Oreo, livro-relíquia de Fran Ross, fez revolução à portas fechadas

Original e incomparável, obra é sátira mordaz que quase foi esquecida

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Fran Ross publicou apenas um livro — e não foi por opção. Emergente da cena setentista que pregava a libertação artística e social dos negros americanos, a autora pulou de emprego em emprego, mas nada parecia sólido o suficiente para construir uma vida ao redor.

Chegou a ser contratada como roteirista do vindouro talk show semanal de Richard Pryor, só para ver o sonho morrer antes da concepção, quando o comediante desistiu da ideia de “ser censurado” e engavetou o projeto. Em 74, porém, conseguiu publicar Oreo.

O romance é destacado de gêneros e formatos. Acompanha Christine Clark, apelido Oreo, uma adolescente filha de pai branco judeu e mãe negra. Portanto, alguém à margem de qualquer comunidade da época. “Branca por dentro e preta por fora”, como o biscoito, Oreo é espirituosa, muito inteligente e resoluta ao extremo.

A edição da Todavia conta com tradução de Heloísa Mourão e capa de Julia Custodio, e material de apoio escrito por Danzy Senna e Harryette Mullen, que ajudam a entender o contexto e o legado da obra (Foto: Todavia Livros)

Na Filadélfia, mora com o avô (que sofreu um derrame e está imobilizado desde então), a avó (que fala um inglês tão carregado de sotaque que soa como idioma estrangeiro e alguém vidrada na matemática das coisas mundanas) e o irmão, um pequeno inventor que prefere o mundo das canções e só conversa em forma de versos rimados. A mãe é uma aventureira desregrada que só dá notícia na forma de cartões postais.

Quando completa idade suficiente, Oreo decide viajar para Nova York e sanar a dúvida que carrega desde o nascimento: conhecer o pai, um figurão da cidade que trabalha com executivos de primeira. 

Fran Ross escreve com pressa e sem avisos, quase que mergulhando num rio bravo e violento. Pela escrita, metalinguística, ácida, tão cheia de referências que parece estar em frequência errada, Oreo passeia pelos mais inacreditáveis cenários e topa com os mais distintos caráteres.

Fran Ross morreu aos 50 anos, vítima de um câncer – e nunca recebeu a celebração que merecia em vida; desde então, Oreo foi redescoberto e figura entre as obras mais importantes dos EUA pós-revoluções culturais (Foto: Reprodução)

Se ainda não ficou claro, o livro é uma releitura do conto de Teseu, que nasceu em berço sagrado, foi renegado por um dos genitores e, na maioridade, saiu em busca de sua origem. Enfrentou labirinto, Minotauro, praga de deuses e então entendeu sua essência e sua razão de ser. Para Oreo, o vai-e-vem construído por Dédalo é o sistema metroviário de Manhattan – e a besta desenfreada é um cachorro filhote.

O humor é carregado de identidade e individualidade. Biracial, Oreo navega pelos limites de sua cor, sua herança e não se equipara a ninguém. Diferente das heroínas da época, também escritas por negras do mesmo movimento de Ross, a personagem é bondosa, esperta e virginal.

Troca a sensualidade pela perspicácia. Muda o ritmo pelo ridículo e supera as situações com clareza e um pouco de esdrúxulo. Por vezes dentro demais das ideias de concepção, o romance é daqueles que, a cada leitura, revelam outros signos e combinações narrativas. 

“Claro, as pistas tinham intenção apenas de fazer Oreo pensar na lenda de Teseu. Não tinham nada a ver com nenhuma de suas aventuras reais”.

Não surpreende que Ross, presa num ciclo de fracassos comerciais e sem emprego fixo, não agradou o público da época. Oreo foi escrito para pessoas que ainda não existiam em 1970. É verborrágico, lúdico, maluco, pós-moderno e experimental. Coloca receitas, equações e palavras inventadas no meio de uma série de contrapartes gregas e ainda escava brechas de depreciação e pessimismo.

Tem aquela pegada cínica que Todo Mundo Odeia o Chris traria em sua rica mistura de cultura da época, referências negras e a linguagem da TV, com muito do mágico mundo de Desventuras em Série e sua sedimentada crônica da infância arruinada. Oreo é diferente de tudo e melhor que a maioria das coisas. 

“Ela não se considerava menor sobre ou de ou em coisa nenhuma”.

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