O Aprendiz é o tipo de filme que, artista ou espectador, ninguém que se preze quer produzir ou assistir. Uma cinebiografia da ascensão de Donald Trump (Sebastian Stan), nas décadas em que o advogado Roy Cohn (Jeremy Strong) o moldou, é repleta dos malefícios e dos cacoetes que levariam o empresário ao topo dos Estados Unidos. Duas vezes.
Estreou na Competição Oficial de Cannes 2024, mas não venceu prêmio nenhum. Tampouco foi abraçado pelos distribuidores, que avacalharam na hora da compra, relegando o diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi (de Holy Spider e The Last of Us) e os produtores a uma campanha no Kickstarter para que The Apprentice visse a luz do dia nas salas de cinema. Em ano eleitoral, as recusas foram frequentes.
A Netflix passou a oferta, e considerando o público-alvo estadunidense da plataforma, composta por apoiadores fieis do agora presidente-eleito, o filme não cairia bem entre sua safra em busca de prêmios, como declarou o diretor. Mas nem todos entenderam a mensagem de cara: o empresário Daniel M. Snyder investiu na produção com a ideia de que pintaria Trump sob belos tons de heroísmo e bonaventura.
O roteiro do jornalista Gabriel Sherman rebobina a fita até os anos 70, quando Donald é aceito no clube dos grandes magnatas de Nova Iorque, à época uma cidade em desesperada necessidade de dinheiro e patrocínio. Em um bar, conhece Cohn, metade advogado, metade bicho-papão, conhecido por defender os clientes mais sacanas e fazê-lo com um sorriso sangrento no rosto.
Aqui, Jeremy Strong começa com a energia em pico, congelando um olhar eletrizante que perdura até os anos finais da vida de Cohn, morto por complicações da AIDS, digo, de um câncer. O registro histórico diz câncer! Para encontrar um nível de mímica a fim de não ultrapassar o limite do humorístico, Stan começa tímido.
É só com o passar do tempo, e o engordar dos cheques que recebe e entrega, que seu Trump adota os maneirismos que fazem do político uma das figuras mais fáceis de parodiar por aí. Os ternos ganham volume, o penteado congela, a pele fica laranja e a fala, ensaiada.
Conhece uma jovem e impetuosa Ivana (Maria Bakalova), que acaba aproveitando os respaldos enquanto a paciência do marido dura. Logo, seu papel como esposa-troféu e ocasional saco de pancadas é veículo para a atriz búlgara extravasar o ódio pelos gestos não-ditos. A polêmica cena de abuso sexual, que virou manchete e marcou presença na campanha eleitoral ao retorno da Casa Branca, potencializa o discurso de O Aprendiz.
Mas este é um filme singular por diversas razões e circunstâncias. A cinebiografia de um homem asqueroso, conhecido pelo preconceito e pela violência, não pode dar vazão a um arco de redenção ou amenidades, como os filmes que costumam figurar em apostas para premiações. Stan encontra suficiente terreno para nivelar a ganância com a galhofa inerente a criação do americano, mas nenhum esforço resolve o problema matriz do personagem principal.
“Não admitir derrota nunca”, instrui o mentor ao pupilo. As regras de Roy Cohn, conhecidas por qualquer um com acesso às redes sociais, constrói a ponte do Trump da virada do milênio para o Trump que acaba de ser eleito, amparado pelos algoritmos que expandem informações falsas, ódio e farsas. Pior: O Aprendiz mostra que nada mudou em quase cinquenta anos; a magnética, inesquecível e nefasta presença do magnata permanece em total curso de poder.
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