O mormaço contagia a atmosfera que a família Perna vive no período entre Natal, Ano Novo e o retorno da normalidade. As tarefas são iguais a cada temporada: regar as plantas, cuidar da grama e tratar dos animais. Em Cães, o uruguaio Gerardo Minutti Bonilla dirige uma bomba-relógio centrada no núcleo caseiro.
Os vizinhos, ricos e bem-quistos, pedem o irrecusável favor de cuidar do cãozinho Ficha enquanto eles se esbaldam em alto-mar. O Golden Retriever da família Saldaña acompanhará mamãe, papai e filhinho, mas o vira-lata é condenado a permanecer no calor periférico de um bairro qualquer de Montevidéu.

O que começa como uma tarefa banal, diariamente, caminhar com Ficha até o local designado para as refeições, logo ganha contornos irresistíveis. Néstor Guzzini e María Elena Pérez conhecem, aos poucos, as mordomias dos vizinhos, e passam a desfrutar quase que em doses homeopáticas dos cremes, colchas e da pressão da água do chuveiro.
Gotejando o desejo e a inveja, o roteiro de Bonilla pinta o retrato que o Cinema sul-americano faz tão bem, ao tratar de temas universais em ambientes controlados. No bairro onde vivem, as famílias são atormentadas pela marginalização que polui o ar e a terra – algo que não diferencia ricos ou pobres.

Pivetes desordenados estouram rojões a torto e a direito, e o mecânico fajuto passeia de moto, passando a imagem de vigilância que cobra mais do que entrega. Cães, portanto, começa olhando a situação animal para depois expandir os horizontes para a desigualdade e o cabo de guerra entre querer e poder dos homens, comumente em posição de passividade. Nestas casas, são as mulheres que tomam partido.
O caráter cíclico da história, que se entrelaça ao sumiço de Ficha e a derradeira descoberta que Cachinhos Dourados provou do mingau, da cama e da cadeira de balanço da Família Urso, parte para a sátira e depois para o escopo de drama ameaçador. Exibido na Competição Novos Diretores da 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Cães é daquelas joias escondidas em plena vista.


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