Nas ondas do liberalismo e da morte aos preceitos morais, os anos 70 foram, também, dominados pelo pânico satânico: um frenesi coletivo que enxergava sinais e cicatrizes de um mal desgovernado e desmedido. Em Late Night with the Devil, uma fita da época é recuperada, junto de filmagens inéditas dos bastidores do programa de Halloween de um talk show, e revela uma faceta oculta da América temerosa.
David Dastmalchian assume o induto de viver o protagonista Jack Delroy, um homem entregue às mazelas depois da morte da esposa, um evento trágico e midiático em passos iguais, e de amargar o segundo lugar na audiência por anos e anos. Na rede UBC, seu programa Night Owls vai mal das pernas desde que Jack passou uma temporada distante, vivendo o luto junto de uma misteriosa seita que o abraça desde o início da carreira.
Uma narração abre o filme de Cameron Cairnes e Colin Cairnes, recriando com primazia o timbre de terror e ponderação – imagine o texto que inaugura O Massacre da Serra Elétrica sendo proclamado pelo mais rouco dos radialistas. Nela, descobrimos vestígios de uma tragédia, acontecida no Dia das Bruxas de 1977, quando o Night Owls fez jus ao tema e convidou exemplares distintos do ocultismo.
A recente descoberta do material chega junto de imagens inéditas dos comerciais. Aqui está o filé mignon do filme, que intercala entre uma direção pragmática à moda dos programas televisivos, em contraste ao pico de tensão que acontece quando as câmeras cortam e os envolvidos, banhados pelo calor dos refletores, têm cinco minutos para bebericar água (ou uísque), retocar o pó de arroz e, de praxe, discutir números do Ibope e alguns inevitáveis contratempos.
Conhecido por papéis de apoio em um raio de filmes que vai dos heróis ao mundo do terror e das drags, Dastmalchian se embriaga da síndrome do bom moço, interpretando Delroy na chave da ingenuidade, para depois desbloquear novos sentimentos e reações, criando assim um protagonista com esqueletos a esconder e com disposição a dialogar, Tarde da Noite, com o Diabo.
Ao seu lado, o mestre de cerimônias do talk show é Gus (Rhys Auteri), espécie de papagaio da consciência de Delroy, e alguém envolvido até demais na história. Para os convidados, o roteiro dos diretores se dispõe primeiro do ilusionista e médium Christou (Fayssal Bazzi), a porta de entrada para as maldições que se instauram no estúdio.
Late Night with the Devil tem mão boa para oscilar do drama de situações para a comédia intrínseca à TV, interessada no jogo de fumaça e espelhos. Afinal, o time do programa topa tudo pela audiência! E ela vem com a doutora June (Laura Gordon), divulgando o livro que revela as influências do demônio Abraxas com a jovem Lilly (Ingrid Torelli), os pontos batem no teto e, sem ter para onde irem, precisam infernizar os ali presentes.
Papo vai, papo vem, vômito preto, sangue na barriga e uma cadeira levitando depois, fica claro que os truques acabaram horas atrás, e Delroy precisa não apenas enfrentar um velho conhecido, como também arcar com as pendências que habilmente concordou tanto tempo antes. Late Night with the Devil, ciente do caráter vagaroso de sua montagem polissêmica e de todo o aparato técnico que complementa a experiência de se assustar com vibrações na TV, glitches e as ondas de frequência demoníacas, se acomoda.
Em menos de 100 minutos, o destino de Jack Delroy é traçado e selado. Nem mesmo o negacionista Carmichael (Ian Bliss) arranha o potencial do nascimento do mal ali. A lenda diz que, após a transmissão do programa de Halloween de 77, o Diabo enviou cartões de visitas para os lares de todos os americanos sintonizados. Foi um terremoto sobrenatural, a abertura da fenda infernal. Responsável por cavar fundo e sentir o calor na carne putrefata, David Dastmalchian não enxerga, pelos olhos de seu Delroy, o tamanho do estrago até que seja tarde demais. O sangue já secou, é hora de dar boa noite.
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