Não é novidade o tamanho da influência queer no Cinema de gênero. Quando o assunto são os filmes de terror, os dois rótulos andam de mãos dadas. A bissexualidade, por outro lado, não costuma figurar no topo das listas, já que a produção LGBTQIAPN+ trabalhou em demasia com o público gay. Em 1985, A Hora do Pesadelo 2 foi recebido com ataques da comunidade, mas o tempo inocentou e ressignificou A Vingança de Freddy.
Sem o envolvimento do criador Wes Craven, o filme quebrou as regras da franquia: o vilão agora matava suas vítimas no mundo real e, no lugar de uma garota sobrevivente, o protagonismo foi dado a Jesse Walsh (Mark Patton), primeiro e único “rei do grito” destes grandes títulos oitentistas. Junto da família, que se mudou para a casa da titular Rua Elm, o adolescente é atormentado pelos pesadelos e pela figura desfigurada de Krueger (Robert Englund).
Mas, diferente das mocinhas de antes e de depois, Jesse enfrenta demônios mais específicos: a presumida e escondida homossexualidade sufocada. Isto é, ele ama a namorada Lisa (Kim Myers), mas nunca consegue consagrar o sentimento; recusa as sessões mais íntimas de amassos, foge da batalha na hora H. E quem o acolhe é justamente seu semelhante, o igualmente atlético e eufórico Ron (Robert Rusler). De rivais no esporte a confidentes tarde da noite, a dupla de meninos protagoniza o arco central do filme.
A certa altura, Freddy irrompe do interior de Jesse e ameaça Lisa. Para salvá-la, o garoto chispa dali e prefere dormir na companhia do amigo. O vilão toma vantagem da situação e mata Ron, deixando Jesse sem rede de apoio. Freddy representa os traços e trejeitos queer que Jesse luta para esconder. E, ao contrário das leituras que focam na homossexualidade como vestígio das ações do roteiro de David Chaskin, enxergar o desenvolvimento de Jesse sob a lente bissexual faz mais jus ao cerne do personagem.
Ele sente atrações distintas por Lisa e Ron, mas elas existem em harmonia e distintas entre si. O que pende a balança para o lado gay da história é a subtrama que envolve o fetichismo, quando num dos pesadelos febris, Jesse acaba indo até o bar da cidade e lá dá de cara com o professor de Educação Física, rígido, cheio de pelos e autoridade, que também acaba vítima de Krueger. Sua morte é desenhada num cenário tipicamente gay da década de 80.
Chicoteado com o couro que ostentava no bar, o professor morre no banheiro, com o vapor do chuveiro criando a névoa das saunas da época. Fato é que, por mais que possa ter sido subentendido na época, A Hora do Pesadelo 2 foi arquitetado com a leitura queer em vigor. O diretor Jack Sholder escalou Mark Patton, na época ainda não assumido, e colocou o jovem em situações que causaram incômodo. Uma cena em que Freddy enfiava a luva de navalhas na boca de Jesse foi retirada do roteiro, já que Patton sentiu-se mal nas gravações.
Quase quarenta anos depois do lançamento, A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy ganhou o status de filme cultuado na comunidade LGBTQIAPN+, tanto pelo retrato cru e visceral de um adolescente entre a cruz e a espada da liberdade, quanto pelas cenas carregadas de tensão, tesão e acidez. A crise da AIDS, capitaneada pelo governo norte-americano, não apenas matou os doentes, mas ajudou na estigmatiação e da demonização da comunidade gay, lésbica, bi e trans. Filmes como esse, à época do lançamento, ajudaram no mito que culpabiliza e vilanizava os indivíduos.
Péssima recepção da audiência geral e com resultados decepcionantes de bilheteria fizeram os produtores retrocederem ao modo esperado, e o terceiro filme da saga trouxe de volta a protagonista original, apostando na construção de uma mitologia contínua e extensa. E, claro, extremamente heterossexual. Muito tempo depois de pesadelos e assombrações, o terror usou sua perspectiva dissidente e disruptiva a favor de grandes clássicos LGBTQIA+, mas o longa que tomou conta da conversa em 2024, e igualmente trata da bissexualidade com originalidade e arrojo criativo, é Rivais.
Luca Guadagnino brincou com o terror em títulos como Suspiria e Até os Ossos, mas Challengers marca um retorno ao drama contemporâneo, colocando em foco um trio de tenistas em expansão física e emocional. O aspecto queer do filme está estampado no pôster e no trailer, com a cena do sanduíche de Zendaya tomando a internet como pólvora (e o atraso no lançamento comercial apenas inflamou o discurso e a curiosidade).
Assim como Freddy Krueger no filme de 1985, a personagem Tashi (Z) é responsável pelo desenvolvimento bissexual dos protagonistas masculinos. Afinal, Art (Mike Faist) e Patrick (Josh O’Connor) passaram anos no desejo calado, e só partiram para o ataque na fatídica noite, regada a álcool barato e ereções incontroláveis. Tashi, ciente de onde estava se enfiando, jogou a mão certa e obteve o royal flush: mal sabia ela o impacto de tal ação.
No conto de rancor e repressão, Rivais faz de trampolim um roteiro apetitoso do estreante Justin Kuritzkes. Aqui, o vai e vem temporal está intercalado aos altos e baixos dos relacionamentos em tela. Tashi, na posição de alfa, ordena as ações do marido, ao mesmo tempo em que sente repúdio e atração pelo ex-namorado. Desse caldo excitado, o diretor italiano extrai o desejo por símbolos e ícones já eternizados na arte.
O suor que umedece as roupas e deixa escorregadia a quadra de tênis é catalisador das ações tomadas por Art, de sangue quente e cueca pulsante. Patrick, quem melhor saboreia cada sacada e rebatida na raquete propositalmente fálica, brinca de herói e vilão durante as mais de duas horas de filme. Tashi, boa voyeur, observa tudo, e toma notas mentais, prestes a serem cobradas e conferidas mais tarde, quando a partida for encerrada e a noite, finalmente, começar.
O clímax de Challengers, que abdica do explícito ao equiparar a volúpia esportiva com a gana sexual, deságua sem testemunhas. Depois dos gemidos, dos gritos e do abraço melado, tudo e nada pode ter acontecido. A conclusão mais precipitada é a de que o Cinema, seja surfando em sonhos molhados com vilões masoquistas ou batendo na bola para lá e para cá, encontra espaço, fôlego e saliva para satisfazer todos os presentes. E pedimos bis.
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