A maternidade sobre as lentes da paranoia é o prato principal de Uma Família Feliz, suspense de José Eduardo Belmonte que coloca dois globais de frente para um frenesi de violência e maldade. Na história, Eva (Grazi Massafera) deu à luz ao terceiro filho. O marido Vicente (Reynaldo Gianecchini) divide a rotina entre o trabalho como advogado e as tarefas do lar. Ele cuida, dá de mamar, troca as fraldas.
Ela, porém, enfrenta os efeitos químicos e psicológicos do puerpério, sempre amparada pelo trabalho que realiza à parte: a confecção de bonecas hiperrealistas, normalmente compradas por familiares que perderam bebês. Quando as crianças aparecem com machucados e cicatrizes que lembram os instrumentos usados por Eva, o esposo enxerga ela por outros olhos.
Digno do título de “pau para toda obra”, o trabalho de Belmonte na direção presta as homenagens de Hitchcock (com o lado voyeur de assistir a vida pacata atrás das cortinas) à Carpenter (em fuga do bicho-papão, Eva tinha uma blusa branca, uma faca e um sonho), engrossando o caldo de seu thriller com a atmosfera angustiante em estado de latência. A fotografia de Leslie Montero troca o escuro pelo jogo de sombras, filmando seus protagonistas-perfeitos em ambientes engolidos pela penumbra.
É como se, no meio de toda a confusão da rotina, ninguém se lembrasse de acender a luz. As situações são enfrentadas e amargadas na escuridão pelo texto de Raphael Montes, que caminha de Bom Dia, Verônica para as telas do Cinema ciente de seus mecanismos e reviravoltas. As redes sociais, junto do julgamento sumário de 2015, foram motores para o início da ideia.
O argumento nasceu em 2015, e demorou a ganhar forma. No processo, Montes aumentou a aposta e também escreveu um livro, que expande a narrativa do filme e já coleciona números expressivos, reafirmando seu apelo para um público que costuma importar esse tipo de narrativa.
Aqui também no papel de diretor-assistente, o autor se camufla em cada troca ácida do casal, dando vazão a sentimentos muito corriqueiros e que dizem respeito às suas posições no mundo branco, rico e “seguro” em que vivem. A sociedade do espetáculo, que vigia e pune sem jurisprudência, organiza e desorganiza o jogo, colocando Eva à beira de um precipício emocional e mental.
Massafera, em um papel que desafia as percepções do público e cresce a cada nova visita ao filme, estremece e deixa o horror inflamar os olhos e o corpo, cravejado por feridas nunca cicatrizadas. Seja na relação passada com a família, o rancor que retém na casa antiga e as dúvidas que alimenta a respeito da ex-esposa falecida de Vicente, sua Eva é tanto a Mulher Original, provedora de vida, como a víbora que amaldiçoou a humanidade.
Pelo som e música de Julia Teles, que vai dos já característicos e estridentes barulhos de tensão até o uso do teremim para elucidar pontos inconscientes, o filme vai se enfiando na psique de Eva, uma final girl com muito a perder. Ao lado das jovens Juliana Bim e Luiza Antunes, intérpretes de gêmeas que de parecidas só tem o visual, a atriz se destaca com êxito. Na coletiva, quando questionada sobre a maneira como o público a enxerga e lida com sua imagem ao longo da carreira, ela definiu: “a beleza é uma embalagem que eu utilizo a meu favor”.
Gianecchini, que concordou com a fala da colega e divide com Grazi a fama de galã nacional, não fica para trás, por mais que seu papel exija menos do corpóreo e recaia no aspecto mental de um homem exausto das mesmas situações, vividas à repetição. Espécie de Superman sem o poder de raio laser, Vicente é o personagem que mais invoca e cisma com a audiência, passando de um simples protetor para, talvez, o lobo mais faminto do galinheiro.
Montes desenvolve a tensão em algumas chaves já manjadas, mas guarda a acidez e o sarcasmo de histórias malditas na conclusão mais do que surpreende de Uma Família Feliz. Da Órfã de Isabelle Fuhrman, até as proles de A Profecia e O Bebê de Rosemary, o filme visita maternidades assombradas até o destino carioca. A cena que chega de supetão, logo após os primeiros nomes dos créditos, retrata de maneira fiel a perturbação inquietante que não morre por nada. Podem tentar afogá-la, espremê-la ou até atropelá-la, mas ela continua ali, eterna, amedrontadora, vivaz.
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