Em Anora, Sean Baker cultiva sua princesa entre abóboras podres 

Palma de Ouro de 2024 esconde conto de fadas em comédia desvairada

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No registro, Anora; na vida cotidiana, ela prefere ser chamada de Ani. Tanto armadura quanto disfarce, a alcunha adotada pela protagonista de Mikey Madison é todinha uma performance de luz e fumaça. Seu trabalho é formado por danças sensuais, lábia afiadíssima e até alguns números ensaiados, como acompanhar o cavalheiro até o caixa eletrônico mais próximo ou adiantar o processo com o contato mais pesado.

A vida de dançarina de boate não é nem glamourosa nem invejável, como a câmera diferenciada de Sean Baker faz parecer à primeira olhada. No ambiente, o neon lambe cada curva visível do corpo das jovens mulheres, que revezam poltronas, salas privadas e o poste de pole dance. Os clientes são vários zé-ninguéns, com carteira cheia e a certeza de que a família não tem ideia de onde estão passando a noite. 

Anora foi exibido após a coletiva de imprensa que apresentou a programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, onde faz parte da seção Perspectiva Internacional (Foto: Universal)

Ani leva a vida com a leveza estrangeira aos personagens típicos de Baker, um cineasta eclodido da onda undergrounddos Estados Unidos, e alguém interessado naqueles que escorregam pela margem da sociedade e da economia. Pense nas profissionais do sexo de Tangerina, nas crianças abandonadas de Projeto Flórida ou no ator pornô esquecido deRed Rocket: agora apague as pré-concepções da cabeça.

Pela primeira vez, Baker mira naqueles com privilégio e excessos. Muito prazer, este é Ivan (Mark Eydelshteyn), jovem russo que encontra Anora por acaso, já que ela sabe desenrolar no idioma tudo que aprendeu na casa da avó. Ele também tem outro nome preferido, Vanya, tão eficiente no mecanismo de autodefesa e preservação como o dela.

Sean Baker e a esposa e produtora Samantha Quan “ensaiavam” as diversas poses sexuais para que os atores tivessem ideia de como atuar nos momentos íntimos (Foto: Universal)

De paraquedas numa vida boêmia em Nova Iorque, o homem saca o talão e gruda na trabalhadora do sexo de bate-pronto. É o início de todas as coisas: drogas, luxúria, shots das mais variadas bebidas e todas as posições possíveis do kama-sutra. Unidos, Ani e Vanya são imbatíveis – e igualmente cientes dos papéis que desempenham na relação, estritamente profissional até que ele quebre o contrato.

Quando viajam à Cidade do Pecado e confessam o amor eterno e efêmero um pelo outro, o casamento de um herdeiro ainda inocente e inconsequente acorda o temor na máfia europeia. A saída é anular a união e mandar Anora para a casa do chapéu. Como princesa recém-empossada, ela não aceita menos do que lhe foi ofertado e morde seu caminho até o destino desejado.

Os capangas da família de Ivan roubam a cena, com destaque absoluto para o trabalho tragicômico de Karren Karagulian como Toros e de Yura Borisov como Igor (Foto: Universal)

Usando o gênero da comédia maluca em contraste ao sóbrio e intocável sonho americano, Sean Baker conquistou a Palma de Ouro em Cannes e continuou afiado e fresco na memória do público, que também sagrou o filme no pódio popular de Toronto. Em vez de se dobrar ao drama clássico, que passeia pela desilusão amorosa e pelo perigo da família rica em conflito à oportunista que roubou um pedaço da herança, Anora embarca na longa montanha-russa de riso.

Os capangas apanham da magrela e esquentada protagonista, no eclipse de uma performance estelar e absolutamente categórica no que diz respeito ao futuro de Madison, que fez sua entrada silenciosa como uma das filhas de Better Things e logo tomou o mundo de supetão nas pequenas (e incendiantes) participações em Era uma Vez em… Hollywood e em Pânico 5. Agora, em posse de material vasto para seu calibre emocional, ela é mais do que uma força de natureza. É o mapa do clima completo.

Para o diretor, a escolha do título foi óbvia: Anora é um nome que, antes, parecia inventado e, depois, será impossível de esquecer (Foto: Universal)

Grita, chora, sorri, xinga e performa. Se mexe, dança, hipnotiza e tem os sonhos destruídos num simples voo de avião. Ambiente em que Baker, no manejo do roteiro folgazão e da montagem hilariante, quebra todos os protocolos e atravessa a tênue fronteira que o filme há tanto evitou. É ali que Anora entende o novo ecossistema, ou, melhor dizendo, o velho terreno onde nada floresce ou germina.

Em um campo de abóboras podres, já passadas das doze badaladas do relógio, a garota lamenta não pelo que passou, mas pelo sólido receptáculo que a aprisiona. Na distante e passageira relação com a mãe; na desordenada casa que divide com a irmã; nas fantasias que finge acreditar na boate ao lado das amigas. Sean Baker entrega os brincos, o anel e o casaco de pele para sua tão radiante e sabida protagonista, para então, na crueldade habitual de seu Cinema, estripá-la dos privilégios que nunca poderiam ser de sua mordomia. 

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