Na plateia, longas gargalhadas tomavam conta do ambiente. Tão altas que até escondiam o som dos espirros, acometidos pela minha terrível crise de rinite. Na fila antes do início da sessão, eram sacos e mais sacos de hambúrgueres; uma multidão de latas de refrigerante e pipoca para todo lado. Aqui e ali, copos colecionáveis na forma da cabeça dos personagens em questão. Enquanto as piadas rolavam, atiradas uma atrás da outra, eu questionava: será que perdi o fio da meada? Em que momento tornei-me imune ao que Deadpool & Wolverine domina com tanta propriedade?
A síntese está na existência do filme, ponte entre os filmes do Mercenário Tagarela, sua entrada no Universo Cinematográfico da Marvel e a chegada dos mutantes à festa. Wade Wilson (Ryan Reynolds) continua o mesmo: falastrão, desbocado e afiado na graça que tira dos “virjões”, que lotam as fileiras do cinema e riem com fôlego de aço. Como se, ao fazer barulho, mostrassem uns aos outros que entenderam a piada.
Palavrões na safra chapa branca de Kevin Feige, sinônimos para cocaína e mil e uma situações onde estar excitado é motivo de vergonha e consagração. Deadpool se esfrega em Wolverine, que mantém a máxima de estar bravo, insatisfeito, cansado e sem vontade de viver. Hugh Jackman veste o colant amarelo e rasga as garras mais uma vez, tempos depois de sacramentar Logan como seu canto do cisne.
Entre 2016 e 2018, a grande audiência comercial foi apresentada a um mutante e se despediu de outro. Se o Deadpool original tinha etiqueta de paródia e desatava a matracar sobre sexo, drogas e rock n’ roll em um ambiente pasteurizado dos Vingadores, Logan marcou um ponto fora da curva. Era brutal, sóbrio e sangrento.
Uma partida do lema colorido, alto astral e amigável que a Fox deixou registrado nos filmes da equipe de mutantes. James Mangold, que havia trabalhado com o personagem em Wolverine: Imortal, encarou o filme de 2017 como um testamento do que poderia realizar sobre as amarras da grande corporação. Depois, acertou em dramas esportivos e errou feio no legado empobrecido pela nostalgia. Traços compartilhados com as notícias recentes da Marvel, que trará de volta RDJ no papel do Doutor Destino.
Deadpool 2, de 2018, já ameaçava o cansaço da fórmula de Reynolds, que recrutava um diretor de John Wick para, ao menos, impressionar na ação. Seis anos separam aquele anti-herói deste. Compra de estúdios, crise criativa que resulta em opiniões azedas ao produto da semana e até o retorno de figuras consagradas no imaginário popular.
A Saga do Multiverso perdeu o fôlego justamente na largada, quando o desmontado Quantumania não encontrou razão de ser. Reynolds, sempre atrasado na piada, chama seu amigo Shawn Levy, péssimo diretor de O Projeto Adam e Free Guy, para trazer de volta seu protagonista boca-suja. O cineasta degrada a qualidade das imagens, deixa tudo cinza e fúnebre, e atua no piloto automático, numa orgia de efeitos visuais e rascunho de roteiro, que agrada às tantas a parcela da audiência que carrega no carcaju o símbolo do masculino ideal e no Mercenário o arauto contra a cultura “woke”.
Em Deadpool & Wolverine, tudo acontece numa sucessão de eventos triviais: Wilson é recusado pelos Vingadores (ou melhor, pelo motorista deles), entra em crise de personalidade e é encontrado pela TVA. A agência de monitoramento temporal que foi pano de fundo para as duas temporadas de Loki ganha o protagonismo de Paradox (Matthew Macfadyen), com plano maléfico e atitudes antiéticas.
O vermelhão escapa, viaja pelo Multiverso em busca do Wolverine perfeito, encontra várias caras nada amigáveis e coloca o plano em ação. Feito tanto como tributo quanto piada para o legado deixado pela Fox, o filme se estende por duas horas de um vazio criativo e narrativo. Ele até incorpora um tal O Vazio, também visto em Loki, mas sem o senso de humor autodepreciativo que faria da ideia um atributo positivo.
As tiradas e punchlines são ditas e repetidas, Deadpool fala suas obviedades para o público e o cinema vai abaixo. Até quando Levy coloca em tela as tão esperadas participações especiais, outrora recebidas com negatividade pelos fãs, e que agora ganham ar de emoção e salva de palmas, o resultado é aquém. Entre Elektra (Jennifer Garner), Blade (Wesley Snipes), Gambit (Channing Tatum), X-23 (Dafne Keen) e o saudoso Tocha Humana (Chris Evans), a sensação de amargor pelo “abandono” dos personagens e universos escapa pelas beiradas e novamente mostra como o filme não tem ideia do potencial ou entrega.
Fosse um filme melancólico de tudo que se foi e não volta mais, Deadpool 3 conseguiria renovar o humor do personagem, reapresentar suas habilidades e particularidades para quem está de saco cheio das repetições do MCU. Ocorre o oposto: cara de comercial de automóvel, reciclagem textual, cômica, criativa – com resultados mais do que favoráveis no campo comercial. No fim, pensei que os espirros seriam o destaque negativo da sessão.
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