Como fotografar um fantasma?

Charlie Kaufman explora luto, memória e ausência em novo curta exibido na 49ª Mostra de SP

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Charlie Kaufman age como alguém que realmente filmaria um poema sobre fotografar o que não existe. Curvado sobre si mesmo, fala baixo, mesmo com a voz amplificada pelo microfone, diante de uma Cinemateca lotada por sua causa. Cada fileira da sala Petrobras estava ocupada.

O encontro aconteceu na última quarta-feira (22/10), durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em uma apresentação especial que exibiu o novo curta de Kaufman, Como fotografar um fantasma, e o longa Anomalisa (2015). A conversa foi conduzida pela poeta Eva H.D., que assina o roteiro do curta – inspirado em um poema seu –, logo após o diretor ter recebido o prêmio Leon Cakoff, homenagem concedida a artistas de destaque da Mostra.

No filme, dois mortos vagam por Atenas, tentando se reconectar com o mundo que os esqueceu. A mulher, interpretada por Jessie Buckley, é fotógrafa; o homem, vivido por Josef Akiki, é tradutor. Ambos tentam restabelecer um sentido entre imagens e palavras. O curta se desenrola de forma não linear e fragmentada, linguagem que o roteirista de Brilho eterno de uma mente sem lembranças domina.

Eva H.D. e Charlie Kaufman conversam com o público antes da sessão (Foto: Bruno Andrade)

Mas, neste filme, Kaufman abandona a ironia e as voltas metalinguísticas que marcaram sua colaboração com Michel Gondry, optando por uma observação distanciada. É quase uma fotografia em movimento, que dura 27 minutos e lembra o melhor dos trabalhos de Alain Resnais.

Os fantasmas atravessam ruínas e praças vazias, enquanto memórias da guerra e da violência se infiltram na tela. O resultado lembra um documentário com imagens de arquivo: pessoas que morreram, cidades que desapareceram, histórias que perderam tradução.

How to shoot a Ghost se ancora em um paradoxo comum na filmografia de Kaufman: o desejo de registrar o que não pode ser fixado, em grande parte o que motiva Synecdoche, New York (2008), primeiro filme que dirigiu. A fotografia, aqui, é também uma forma de perda, e as imagens tentam capturar o que já se foi.

A tradução, por sua vez, é outro fracasso: transformar uma língua em outra é sempre enterrar um pedaço do original. Não ouvimos os fantasmas, propriamente, mas uma narração que conta suas histórias — um modo de continuar conversando com o mundo mesmo depois de morto.

How to shoot a Ghost estreou no Festival de Veneza (Foto: Monarch Kaleidoscope)

Há um tom político em todo o filme, embora discreto. Quando Kaufman mistura imagens históricas de guerra com planos contemporâneos de Atenas, a fronteira entre passado e presente se dissolve. É interessante, mas não resume o curta, já que as ruínas não são apenas gregas.

No tapete vermelho do Festival de Veneza, onde o curta estreou em agosto, Eva H.D. exibiu um cartaz em solidariedade à Palestina: “We are all an audience to genocide”. A frase reverbera no filme sem ser citada, mas foi lembrada por ela durante a conversa na Cinemateca.

Kaufman parece dizer que a dor só é suportável quando compartilhada, e que filmar é um modo de testemunhar. Ele próprio comentou: “Eu tento escrever a partir de qualquer coisa pela qual eu esteja sofrendo. Mas o pensamento que tenho na minha cabeça é que deve haver alguém com quem essa obra vai conversar”. O filme tenta construir esse diálogo entre vivos e mortos, artistas e espectadores, lembrança e esquecimento.

Eva o lembrou de Adaptação (2002), filme dirigido por Spike Jonze em que Nicolas Cage interpreta um roteirista em crise por não conseguir escrever — o próprio Kaufman. “Não posso fazer Adaptação de novo”, respondeu.

Como fotografar um fantasma foi exibido antes de Anomalisa, que celebra dez anos. A animação stop-motion aborda a incapacidade de se conectar, retratando a solidão do reconhecimento em rostos idênticos. Naquela sessão lotada, tudo pareceu se resumir a isso: o diretor, a poeta, os filmes e o público, reunidos em uma piada silenciosa sobre atenção, presença e ausência.

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