Roma foi um projeto mais do que pessoal para o mexicano Alfonso Cuarón, que tomou o tempo necessário para voltar à cadeira de direção. Cinco anos depois de vencer alguns Oscars pelo conto preto-e-branco da infância perdida, ele escreve e dirige Difamação (Disclaimer*), minissérie da Apple TV+ que convoca Cate Blanchett à execução pública.
A história verte do romance de Renee Knight, centrado numa documentarista respeitada pelo trabalho e pelos temas polêmicos que cavuca. Catherine acaba de vencer um importante louro na carreira, e tudo parece estar às mil maravilhas. Ao menos na superfície. A relação distante com o filho Nicholas (Kodi Smit-McPhee) é um problema que dorme tranquilo no canto da mente da mulher, assim como o silêncio que compartilha com o marido Robert (Sacha Baron-Cohen, irreconhecível à primeira vista).
Na bancada da casa que passa por renovações e mudanças, está o livro The Perfect Stranger. Um exemplar auto-publicado pelo autor, assinando sob pseudônimo, que contém uma história do passado de Catherine. Pior: revela o segredo que ela trancou há anos e construiu a nova vida ao redor.
Quem está por trás do livro é o casal Nancy (Lesley Manville) e Stephen (Kevin Kline), pais do rapaz com quem uma Catherine no auge da juventude dividiu momentos de choque e prazer na Itália. Assim, o roteiro de Cuarón amontoa o presente, o passado, a ficção e a perseguição que Blanchett evita, até o ponto do não-retorno, quando as ações dos enlutados parentes engolem o cotidiano da jornalista.
Louis Partridge encarna o tal Jonathan com a dualidade necessária para convencer tanto na pele do cordeiro inocente, quanto do lobo faminto e predador. As cenas que divide com o avatar de sensualidade e carinho de Catherine, vivido por Leila George, atestam o poder narrativo do diretor, que brinca com as suposições e as expectativas. Em simples conversas regadas ao álcool afrodisaco da praia europeia, o sexo nasce sem qualquer contato ou troca de fluidos.
A montagem oscila entre os diferentes pontos de vista, amparada pela narração carregada de lirismo de Indira Varma. As raízes literárias da obra estão em total efervescência em todos os frontes, especialmente na maneira que retrata as peças principais de forma transparente. Afinal, a visão unilateral da escrita de Nancy, que não teria meios de saber tanto através de uma dezena de fotos e nada mais, conjura Catherine à luz das qualidades do filho.
No presente, a Londres onde moram os personagens é cristalina e lavada. Cuarón instrui a incomum dupla Bruno Delbonnel e Emmanuel Lubezki a sanitizar os luxuosos aposentos da mulher e a casa empoeirada do casal. Os cenários perdem viscosidade e vitalidade, ao melhor estilo de salas de hospital: há um clarão dormente nos cômodos que abrigam a tristeza e o pesar, abafando qualquer possibilidade do sol entrar pelas venezianas ou da chuva cessar. Cada diretor de fotografia ficou com uma “visão” da história, trazendo características singulares para as parcelas do livro e as da vida real;
Naturalistas, as imagens de composição simples e obtusa atuam a favor da contação da história na mesma medida em que atrapalham o nó dramático da coisa toda. Pegue, por exemplo, a emblemática sequência do afogamento, que tira o fôlego não só de Jonathan, mas também de quem assiste. E agora compare com os episódios seguintes, que misturam as linhas do tempo e as perspectivas, atrapalhando a manutenção da tensão e do premeditar do espectador.
Para cada acerto estético, Alfonso Cuarón deixa a desejar no contraponto narrativo. Difamação eleva discussões na periferia do roteiro, como a misoginia, a cultura do cancelamento, o papel do jornalismo em tempos de desinformação e até as redes sociais como vício cabal de uma juventude à mercê dos pais. Blanchett, em um aparente duplicado extra-tela da personagem que viveu em TÁR, apresenta os músculos em plena forma e razão de ser; pena que esta Catherine careça justamente do que fez Lydia Tár alguém titânica dentro e fora dos conflitos pessoais.
No derradeiro sétimo capítulo, quando a mulher enfim conta a história verdadeira do encontro com Jonathan e as cicatrizes que estancou a panos quentes, a minissérie perdeu a atenção e a estima que instigou no início. É tudo instável e violento, como o mar que engoliu uma vida inteira num piscar de olhos; os salva-vidas estavam ausentes. Não tira o efeito abrasivo da conclusão de Difamação, que surge menos agressiva do que o combinado.
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