Sandra Bullock era uma atriz classe A quando estrelou Um Sonho Possível (The Blind Side). Vinda de um sucesso comercial de verão, A Proposta, foi com o drama biográfico que conseguiu atenção das premiações “sérias” e venceu o prêmio de Melhor Atriz no Oscar 2010. O papel de Leigh Anne Tuhoy, uma mãe sulista e branca que adota o jovem prodígio negro, porém, rendeu polêmicas.
A começar pela natureza do filme, que adapta o livro de Michael Lewis pelas beiradas, deturpando a origem de Michael Oher e pintando a família Tuhoy como o exemplo mais belo e genuíno de humanidade e compaixão. Um dos exemplares mais populares do tropo do “salvador branco”, com a direção de John Lee Hancock, Um Sonho Possível até que engana sua audiência.
Afinal, com a trilha sonora acolhedora, os signos fortes da cultura americana e uma trama de pobreza à riqueza, com amor familiar e sucesso na vida profissional, o caminho já está pela metade. Soma-se a receita o star power de Bullock, e tcharam, está feito um filme perfeito para ser transmitido aos alunos da sexta série em dias de chuva, quando o parquinho está cheio de poças.
A coisa rendeu tanto que, em 2023, Michael Oher entrou com processo judicial contra Leigh Anne e o marido Sean. O homem alegou nunca ter sido formalmente adotado pela família, e feito vítima de um intricado processo de curatela, que tirava dele a ciência de si e os lucros provenientes do filme. A justiça acatou a proposta e deu fim a relação entre as partes.
A polêmica, porém, estava natimorta em 2009, ano de lançamento nos cinemas. O que se via era a chance imprescindível de premiar Bullock, e honrar o vasto currículo da atriz. E os sucessos não são poucos: Enquanto Você Dormia, Miss Simpatia, A Casa do Lago, A Proposta representam uma fração da filmografia, que chegou ao pico naquele ano. Não surpreendeu, portanto, as vitórias que aconteceram no Globo de Ouro, Critics Choice e Sindicato dos Atores.
O único corpo votante que não mordeu a isca – e nem se mexeu para indicar Um Sonho Possível -, foi o BAFTA (premiando Carey Mulligan, por Educação). Chegada a cerimônia do Oscar 2010, a vitória de Bullock parecia garantida. E a indicação surpresa na categoria principal atestou a força do longa entre os votantes. Tamanha foi a revolta por parte da mídia, como um filme deste disputa como Melhor do Ano?, que a Academia mudou as regras e, ao invés de 10 vagas obrigatórias, a lista flutuaria entre 5 e 10.
E quem assiste desavisado, provavelmente vai fechar o aplicativo de streaming com lágrimas nos olhos e um sorriso dormente nas bochechas. John Lee Hancock (de Os Pequenos Vestígios) calcula tudo: ele transforma Bullock em mito, com o cabelo loiro descolorido, os saltos, os modelitos em conjunto com a bolsa e a pinta de perua.
Da imagem intocável da “Karen” destemida e ferrenha, o filme parte para o retrato racista de Michael (papel do novato Quinton Aaron). Ele é grande, lento e alheio ao redor. Abandonado pela mãe, usuária de drogas, não tem casa nem estudos, e logo chama atenção da família Tuhoy.
Será que ele vai nos roubar?, se pergunta Sean (Tim McGraw; é, ele mesmo!). ‘Saberemos amanhã’, responde Leigh Anne, se preparando para dormir o sono dos anjos. No dia seguinte, a casa não só está arrumada, como vazia. Michael, em sua silhueta marcante, caminha para longe. Leigh Anne, impetuosa que só, manda ele voltar. E ele volta. E eles viram a família perfeita.
Com a ajuda da Ms. Sue (Kathy Bates), uma educadora particular, Michael supera as dificuldades, tira notas boas, joga futebol muito bem e tem a chance de escolher a faculdade que cursará. Os irmãos adotivos, Collins (estreia de Lily Collins) e SJ (Jae Head), amparam e ajudam no que podem. Até os professores mais relutantes dão o braço a torcer e se juntam ao coro de torcida para Michael.
Seu jeito carinhoso e protetor é comparado ao do Touro Ferdinando, em uma manobra dramática que tira o poder do jovem, infantilizando qualquer ação ou fala dele. O homem negro, admirado à distância pela criação difícil e estereotipada, é alvo de congratulações não para ele, que superou tudo e suou para chegar onde está, mas à mulher que financiou e investiu ali.
A internet e o jornalismo já espremeram o que era possível da pauta white savior de Um Sonho Possível, e não resta muita novidade para analisar o impacto negativo que o filme causou. No mesmo ano, o Oscar reconheceu Preciosa como Melhores Roteiro e Atriz Coadjuvante, desta vez uma história feita sobre a lente de cineastas negros, negando a caricatura e o tropo de que apenas um branco pode salvar a alma perdida no lado perigoso da cidade.
Em apenas 4 anos, Sandra Bullock entregaria a melhor interpretação da carreira, com Gravidade. Das várias vitórias do filme de Alfonso Cuarón, a atriz não foi uma delas. O troféu recente por The Blind Side pode ter afugentado os votantes de reconhecê-la novamente. A chance de premiar a própria Preciosa (Gabourey Sidibe) ou uma promessa como Carey Mulligan, foi desperdiçada. Mas não surpreende: não há nada mais hollywoodiano do que encher de elogios e medalhas uma atriz renomada em um papel para lá de descartável.
Deixe um comentário