É preciso que se instaure um cenário de distopia futurista para que entremos na jornada de um grupo de jornalistas na linha de fogo, e o mote de Guerra Civil, o quarto filme de Alex Garland, se descomplica na gênese: os Estados Unidos, em conflito de facções contra o governo, se digladia. A Guernica de bombas, tiros, explosões, sangues e covas vira paisagem no horizonte do automóvel chinfrim dirigido por Wagner Moura.
Seu Joel é um sujeito boa-pinta, acompanhado pela multipremiada e ainda mais reconhecida Lee (Kirsten Dunst), fotógrafa prodígio que mudou o mundo ao seu modo. A foto que capturou, em uma manifestação da Antifa em épocas de caloura, ganhou as manchetes globais. Agora, anos à dentro de uma carreira soterrada de cansaço e pendências, ela aceita sem muita afetação a tarefa de viajar de Nova Iorque a Washington.
O boato é que, encurralado, o Presidente vivido por Nick Offerman irá se render. Lee quer eternizar em foto, Joel, mais teimoso, quer aspas do então chefe de Estado. Junto da dupla, a presença sempre impaciente e experiente de Sammy (Stephen McKinley Henderson) torna-se antídoto para a negatividade e o cansaço expressados pelos colegas mais jovens.
E, na rabeira do esquadrão, Jessie (Cailee Spaeny) esbarra com a ídola de profissão e é aceita na viagem de estrada. Não tem muito segredo na arquitetura de Garland, conhecido pelas firulas visuais de Ex_Machina eAniquilação, e pelo papo furado de Men. Em Guerra Civil, sua aparente aposentadoria da cadeira de direção, a tensão é ingrediente primário.
O cenário, devastado em clima de apocalipse sem os infectados ou mortos-vivos, é atravessado pelo grupo como uma mata selvagem e traiçoeira. No roteiro, Garland pontua as discrepâncias das “muitas Américas” abrigadas dentro de uma nação dividida e irada. Ele oscila a visão das câmeras das jornalistas com o olhar vibrante e fúnebre de uma cadeia de infortúnios, tragédias e muita, mas muita barulheira.
O som ganha tratamento extra especial, e o uso de full blanks, ao invés de um quarto ou um terço, para as sequências de tiroteio é eloquente e certeiro tanto no elenco, que experienciou em cena o grunhido e o tranco das armas, quanto na audiência, refém dos sustos e dos gritos raivosos das armas, que não saciam a sede de morte e miséria, não importa o número de corpos se acumulando.
Na terra amoral, o filme não economiza no retrato dos americanos do interior que acabam furando e sangrando qualquer um diferente de si. Na cena que constrói Jesse Plemons como vilão de horror, Guerra Civil pisa no freio, mas atiça cada nervo, massageando a tensão e a apreensão até que o pavio não passe de cinzas. O vômito de Jessie chega desavisado e tampouco surpreende os passageiros do carro, que àquela altura já fediam a suor, lágrimas e ao enxofre inebriante da atmosfera.
Dunst, na performance mais afiada de uma carreira em constante expansão dramática, deixa que as rugas do tempo e da profissão demarquem labirintos inteiros em seu rosto. Ao lado de Spaeny, ela trava um conflito interno: de que vale um fotojornalista, se o mundo que assiste aos terrores capturados, não enxerga parada na feitura desses atos? E, pior, se não houver registro, como a sociedade reage à cegueira?
Ela induz a jovem profissional a procurar e eternizar os momentos com base na luz perfeita. O brilho que varia de formato e padrão, mas mantém a máxima de expressar com exatidão uma ação, uma fala ou a morte da esperança. Spaeny, na traseira do veículo e prestes a assumir o volante, busca o mesmo objetivo de Dunst, em lados opostos da jornada.
Então, não é espantoso que as câmeras, analógicas, digitais, arcaicas ou adaptadas, façam o papel das armas, revólveres, pistolas, metralhadoras e tanques. Na coreografia mortífera de esperar, se arriscar, mirar e bater a foto (em inglês, o verbo shoot serve tanto para as fotos quanto para as balas), os jornalistas são avatares de um conflito de impotência e perdição. Eles miram com as lentes como se munidos de cartuchos e centenas de projéteis.
Guerra Civil faz parecer simples a ideia de paz e conformidade com a democracia em estado de luto perene. O mundo se acaba, mas uma cidade qualquer vive à parte, e não quer se envolver. O mundo queima, e o posto de gasolina serve de abatedouro para desafetos do passado. Os Estados Unidos, em uma realidade nada distópica que enxergam a si como a capital da Terra, engolem choro, fumaça e cinzas, e só ouvem-se os cliques. De 30 fotos, uma se distingue, pronta para ser tratada e publicada. Com os profissionais atrás da mira, a matemática da salvação é mais cruel.
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