Além de notório escritor e um dos precursores do Jornalismo literário, Truman Capote era um bicha bichérrima. E como boa bicha bichérrima, sempre esteve rodeado de mulheres ricas da altíssima sociedade. Entre jantares com pratos caros e vinhos mais caros ainda, ele foi ganhando notoriedade e carinho por elas, apelidadas carinhosamente de Cisnes. Criaturas de beleza magistral, mas que por baixo da superfície carregavam dores grandes demais para serem suportadas sem danos à alma.
Na segunda temporada da antológica Feud, habilmente chamada deCapote Vs. The Swans, Tom Hollander assume o protagonista sem receios de mergulhar no vício e na morte que o cercou. A amizade com as divas, em especial Babe Paley (Naomi Watts), foi arruinada quando Truman publicou um artigo zombando de acontecimentos reais de suas belas aves, causando um frisson na bolha ultra rica de Nova York entre os anos 60 e 70.
Desta maneira, o roteirista e idealizador Jon Robin Baitz se debruça sobre o livro Capote’s Women: A True Story of Love, Betrayal, and a Swan Song for an Era (2021) de Laurence Leamer, em uma investigação sensorial e temporal das influências do álcool, da inveja, da misoginia e da Arte na vida de um homem gay celebrado por seu talento. Capote, que na vida real era ele mesmo uma caricatura auto imposta cheia de maneirismos e cadência, espécie de fada ácida, é vivido por Hollander com uma entrega raramente avistada na TV.
Ele se deixa levar pela forma que o homem se mexe, gesticula, sibila, xinga e observa. O sotaque e o tom da voz acertam em cheio uma mimese da pessoa de carne e osso, mas nunca soando falso demais ou trabalhoso em desgaste. Sua performance é um banho de sais minerais, que adocica a princípio para depois incomodar nos lugares menos propícios.
Gus Van Sant, de Elefante e Garotos de Programa, comanda seis dos oito episódios, levando seus olhos à moda e camuflagem dos milionários e magnatas. Quando filma os almoços no restaurante La Côte Basque, a câmera passeia com cortes rápidos e horizontais entre os presentes, que desatam a reclamar de seus parentes, amigos, inimigos, rivais e da própria fama e sucesso.
Ricas por terem nascido em berço de ouro, casado em matrimônio frutífero, ou mesmo os dois, as Cisnes balanceiam o centro dramático da série, que dessa vez apenas empresta o nome de Ryan Murphy, sem qualquer envolvimento criativo direto no roteiro ou na direção.
Naomi Watts é quem representa o verdadeiro amor de Truman, uma mulher magoada pelo marido infiel (no último papel da carreira de Treat Williams) e presa em uma realidade que a mantém longe dos filhos, emocional e fisicamente. Capote a define como uma péssima mãe, assim como o faz sobre todas suas protegidas. Elas, define, não nasceram para cuidar ou para nutrir.
Já na casa dos cinquenta anos, essas mulheres são esquecidas e diminuídas em suas relações, e encontram na amizade com um homem gay a chance de brilhar e serem valorizadas. Pontiagudo no retrato do preconceito e da misoginia que vive intrínseca a comunidade LGBTQIA+, o roteiro de Baitz não mede palavras nem esconde o verdadeiro espírito de Truman. O texto é amaciado e esbofeteado por floreios e riquíssima construção de observações incômodas.
Depois do sucesso avassalador de A Sangue Frio e Bonequinha de Luxo, o autor encontra-se mais interessado em secar as garrafas de uísque, vinho e vodca do que em sentar e escrever seu próximo sucesso. Há indícios de que, na vida real, Truman só publicou as maldades sobre as amigas por conta de seu estado mental, afetado pelo alcoolismo. O cérebro dele, como define o ex-parceiro Jack (Joe Mantello), se comprimia e encolhia a cada nova golada.
Como cervo saltitante, Truman mordeu e canibalizou seus Cisnes na alma, arrancando mais sangue e vísceras do que imaginava. Babe, que a certa altura recebe um trágico diagnóstico de câncer, perde seu melhor amigo e vai empalidecendo, como uma bela girafa longe de seu potencial máximo.
Quem contraria o pensamento do perdão é Slim Keith (Diane Lane), a víbora feroz que não abaixa a cabeça para Capote e muito menos deixa de lado a chance de sair por cima de qualquer situação. No meio termo, Lee Radziwill (Calista Flockhart) calcula cada movimento e ação: uma lince alerta para qualquer movimento brusco ou oportunidade de predar.
C.Z. Guest (Chloë Sevigny) não abandona o protagonista, servindo de mensageira entre a mesa do restaurante delas e o apartamento decrépito dele. Uma coruja, que mistura a sabedoria com a falta de interesse no jogo de poder que acontece à luz do dia, entre os maridos traidores, as esposas aos frangalhos e as tentativas de furar a bolha de poder. Joanne Carson (Molly Ringwald), a Cisne distante do ninho, é quem acolhe Truman em sua pior hora, no papel de uma verdadeira lebre, ciente e prestativa.
Realmente fora do círculo e alvo de mentiras e escrutínio, a personagem de Demi Moore racha a primeira brecha no mundo perfeito de Truman. Sua Ann Woodward é primeiro um alento de horror, para depois sentir na pele o poder da escrita do homem, envenenada em cada vírgula, ponto e escolha de sinônimos. Presa fácil, ela não passa de uma pomba que nunca conseguiu se tornar Cisne.
Mas quem assombra Truman é sua mãe morta. Um fantasma nas fantasias mais terríveis dele, Jessica Lange imprime seu habitual sarcasmo e violento tom de marasmo para assombrar o filho. É ela que, em momentos de fraqueza e devaneios, tenta e articula a derrocada dele. Movimento de autoestima destruída e a manutenção de uma relação desvairada de atenção, culpa e infelicidade, ela é peão da imaginação de Capote, uma águia-gárgula, sedenta.
Longe do frenesi cronológico que tornou Bette and Joan uma peça à parte do que era veiculado na TV, a segunda temporada de Feud busca o caminho psicológico da derrocada e do embate do título. Afinal, entre os anos que marcam a amizade e a cisão de Capote e as Cisnes, cabe ressentimento e muita mágoa não processada.
Em romances passageiros, Truman idealiza John O’Shea, em quem Russell Tovey flexiona indignação, nojo e a homofobia internalizada que ainda estava em vigor antes da crise da AIDS. Sua filha, Kate (Ella Beatty), é apadrinhada por Truman, que despeja nela os vestidos, colares e penteados que tanto sente falta de ver no corpo de Babe. Numa sucessão de decisões precipitadas e enviesadas pelo vício, o personagem se afoga física e literalmente.
Suas Cisnes, à deriva no lago de privilégio e falsa proteção, percebem a passagem do tempo e seu estado obsoleto. Quando Nova York rejeita o passado, elas não têm espaço para prosperarem como em outrora. As jaulas do zoo são abertas e, sem supervisão, as feras se mordem, mastigam as fraquezas e digerem as desconfianças; Truman passou de simples visitante a zelador do local.
O manuscrito de Answered Prayers, o rascunho dessas histórias cruéis que desnudaram as amigas e seus podres, nunca foi encontrado ou publicado. Truman Capote morreu em 1984, distante de todos, abraçado pelos vícios, pela frustração e pelos fantasmas mortais de cada alma que arruinou. No centro da tempestade, a mãe, suicida, assombrando o futuro do filho. Ele, tão genial e tão genioso, desde criança fadado a amar e odiar as mulheres que melhor imitavam os atributos maternos que viu sendo ensaiados na sala de casa, aguados com vodca, cheirando a cigarro e sem uma fresta de paz ou sossego.
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