Para subir ao palco, Nora (Renate Reinsve) possui um ritual inato: ela foge, pensa em desistir e só retorna à posição depois de levar um tapa. Rapidamente, o figurino rasgado é remendado com fita, o microfone é posicionado de forma correta e ela adentra o holofote que a iluminará pela próxima hora e meia em que será o centro das atenções. Esses comportamentos, somados à impulsividade, causariam aborrecimento no pai Gustav (Stellan Skarsgård), diretor de cinema que abomina o teatro.
Ainda não conhecemos o patriarca, mas a linguagem corporal transmitida por Nora em seu momento de vulnerabilidade artística já diz mais que qualquer linha dos diálogos escritos por Joachim Trier e Eskil Vogt em Valor Sentimental, o drama norueguês que trata do remorso e do Cinema como faces complementares da mesma problemática.

Há anos que Nora evita a presença do pai, e só tolera pequenas ou míseras interações, especialmente quando a caçula Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas) pede com os olhos mais expressivos e convincentes do mundo. A família não se reúne em circunstâncias normais, e é devido ao funeral da mãe que o reencontro toma parte.
Na casa da infância das meninas – e que habita a longeva árvore genealógica do pai por gerações, é onde a narração de Valor Sentimental planta todas as sementes que não demorarão a germinar em discussões e arrependimentos. O local, agora habitado mais por fantasmas do que por pessoas, possui uma rachadura que sobreviveu aos anos e aos traumas, diferente de seus habitantes.

É justamente na intersecção de vulnerabilidade e medo que Trier fundamenta seu trabalho de direção, aumentando a aposta de infelicidade que preencheu A Pior Pessoa do Mundo e agora se volta para um trio de parentes incapazes de conciliar o rumo de suas existências. Gustav, vindo de uma aposentadoria indesejada, planeja dirigir um roteiro original que se baseia, entre outros pontos, no suicídio da mãe e na vida efêmera da filha mais velha.
Nora recusa o papel, o que coloca o diretor em busca de alguém que seja capaz de duas coisas: primeiro, interpretar uma personagem tão complexa e tão cara ao realizador, e segundo, conseguir financiamento para a produção. Rachel Kemp (Elle Fanning) tica as duas exigências, emprestando sua jovialidade e potencial inexplorado numa investigação infrutífera ao passado e ao verdadeiro âmago de Gustav.

Valor Sentimental é um filme que rodeia a tristeza com a arte e a memória, separando pai e filha em situações analisadas no corte frio e revelam o espírito desbravador que, de tão semelhantes entre si, geram efeito repulsivo. No meio da batalha, Agnes apazigua o que está a seu alcance, permitindo que Lilleaas roube o longa para si e deixe marcada à fogo a melhor e mais desoladora das impressões.
Sucesso por onde passou, o longa representa a Noruega no Oscar 2026 e venceu o Grand Prix de Cannes, além de troféus no BIFA, em Toronto e indicações de montão no Globo de Ouro e no Critics Choice. Os quatro atores disputam as honrarias, além do reconhecimento de Trier por sua direção sensível e o roteiro impassível e deveras simbólico que escreveu ao lado de Vogt.

Na Trilha Sonora, as composições de Hania Rani dão o tom de melancolia e nostalgia que o Cinema do diretor se apossa, aproximando-se, junto da figura de Fanning, de um americanismo próprio e calculado. Com requintes de Bergman, também, Trier deixa que a montagem de Olivier Bugge Coutté brinque com sobreposições e contrastes, com direito a momentos alucinógenos dos comportamentos repetidos de pai e filha.
Skarsgård, buscando sua primeira indicação ao Oscar depois de uma carreira que carece de novos adjetivos e superlativos, faz de Gustav um homem de contradições. Temas que, por acaso, são latentes em Jay Kelly, drama de Noah Baumbach na Netflix que coloca um ator sexagenário na trilha da desilusão pessoal. Embora a poesia soe semelhante, Trier opta pelo caminho mais sóbrio; para a euforia saudosista de Clooney, Reinsve e cia internalizam seus medos, no melhor estilo de europeus que falam pouco e demonstram muito.


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