Depois da Caçada: as elegantes e carnívoras sobreposições de Luca Guadagnino

Diretor italiano convoca Julia Roberts para uma armadilha moral

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A penumbra domina o apartamento luxuoso da professora Alma (Julia Roberts), local repleto de convidados grã-finos, bebericando licores caríssimos e trocando opiniões envelopadas no alto teor filosófico de suas profissões. É assim que Luca Guadagnino introduz o mundo de Depois de Caçada (After the Hunt), pelo contraste de luz e sombra.

A parceria musical com Trent Reznor e Atticus Ross aclima o ambiente com tensão e batidas esporádicas de um mal grande demais para ser ignorado. E essa fatalidade acontece em outro apartamento mal-iluminado, desta vez o de Maggie (Ayo Edebiri), que convida o professor Hank (Andrew Garfield) para uma saideira e é violentada.

Maggie era originalmente uma personagem branca, mas Luca Guadagnino reescreveu o papel após a escalação inicial de Zendaya; com sua saída, Ayo Edebiri assumiu a personagem (Foto: Amazon)

As consequências atravessam a vida de todos os envolvidos, como o roteiro da estreante Nora Garrett faz questão de pontuar e sacudir ao máximo. Tratando de uma tema incômodo como o abuso e suas reverberações intra e extra-corpóreas, Depois de Caçada decide observar à distância em vez de tomar partido.

Sua protagonista, que tem a sisudez de uma Cate Blanchett ou Tilda Swinton, ganha com Julia Roberts a subversão do arquétipo que a estrela do Cinema acostumou-se a interpretar. Sua figura, imponente e muito comportada, vai apodrecendo ao passar das horas, especialmente quando os pecados do amigo Hank começam a transbordar nela.

A Trilha Sonora Original evoca flautas e piano, ensurdecendo também ao aderir a um tique-taque do relógio, em contagem regressiva para uma explosão (Foto: Amazon)

As gerações de professores e alunos, numa constante coreografia de ataque e defesa, revelam-se partes opostas que se refletem quase que perfeitamente. Seja na exausta postura da psicóloga vivida por Chloë Sevigny, ou em Alex, parceire de Maggie, papel de Lio Mehil, de Mutt: o diagnóstico é o mesmo.

Os millennials que apedrejam qualquer discussão sobre gênero e raça; os nascidos na Geração Z que procuram conforto em toda situação de confronto e cobrança. No fim, Guadagnino usa de um personagem à parte do cosmos de guerra, o marido de Alma, para dar cabo de narrativas enfadonhas que, depois da troca de socos e chutes, acabam em lamentação.

É Preciso Perdoar (You Must Forgive), na interpretação de Cesária Évora, Caetano Veloso e Ryûichi Sakamoto, embala a casa de Alma e Frederik [Foto: Amazon]

Frederik (Michael Stuhlbarg) se incomoda com a proximidade da esposa com Hank – mas não faz o necessário para mudar a situação. Tampouco se agrada dos atrasos, das desculpas, da falta de sexo ou da estudante que adora Alma e imita-a até na maneira de se vestir. Sua forma de lidar com os diversos cacos da relação é extravasando nos pratos elaborados e na escolha da trilha sonora.

O bom apreciador da antiguidade e do vintage conecta a conta do Spotify ao alto falante da cozinha e deixa que as músicas clássicas façam a tapeçaria vibrar. Alma não reclama, embora pouco tolere o comportamento dele. A guerra é silenciosa, persistindo nos contrapontos que o montador Marco Costa evidencia: cortes que fazem a monotonia sufocar quem assiste, paralelos ao enfurecido comportamento de Roberts a medida que sua posição no corpo docente é cutucada à torto e à direito. 

After the Hunt participou da Competição Oficial de Veneza (Foto: Amazon)

Guadagnino, que tem enfileirado trabalhos que desafiam os limites da moral com Queer e Rivais, matura em After the Hunt uma narrativa sóbria e propositalmente dúbia, colorindo seus personagens com tons terrosos e uma balança ética que pende para o lado que a culpa arde. A hipocrisia é visível à olho nu, assim como a covardia e a felicidade de manter-se neutro, bem apessoado e, principalmente, em posição de superioridade. 

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