Retrospective Evil: falar sobre Resident Evil 5 é um pesadelo

Por anos o título mais bem vendido da série, o quinto capítulo também é um de seus mais controversos

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Cena do jogo Resident Evil 5. Chris (à direita) e Sheva (à esquerda) estão no telhado de uma construção, apontando para baixo, enquanto um helicóptero preto se aproxima por trás. Chris, segurando um rifle de assalto com ambas as mãos, é um homem caucasiano de cabelos pretos e curtos, usando uma calça bege e uma camiseta clara com um emblema no ombro direito. Ele usa joelheiras por cima da calça e carrega um coldre de pistola na perna direita. Em suas costas, vemos o cabo de um facão aparecendo atrás de seu ombro esquerdo. Sheva é uma mulher negra de cabelos pretos, usando uma calça verde e uma camiseta regata roxa. Ela segura uma pistola com mira laser em ambas as mãos e seus ombros e seu pescoço são adornados por tiras e contas. Ela possui um cinto e bolsos amarrados na perna direita. Em suas costas podemos ver que há outra arma. O helicóptero que se aproxima atrás deles está de portas abertas e podemos ver um soldado de uniforme escuro pegando uma arma grande. O céu atrás deles é pálido.

Resident Evil 5 é um jogo incrivelmente racista. Devem existir formas melhores de começar um texto discutindo o legado do quinto jogo da série, mas é difícil apreciá-lo em 2025 sem antes ter que confrontar o fato de que suas problemáticas são bem mais evidentes hoje do que eram há 16 anos. Mas isso também não significa que essa discussão seja inédita. Desde seu primeiro trailer o jogo da Capcom já chamava atenção por sua apresentação caricata da África Ocidental, num país não especificado, onde os experimentos de um vilão nefasto contra a população local produziram resultados previsíveis. Mesmo colocando o herói de ação original da franquia, Chris Redfield (Roger Craig Smith) sendo auxiliado por Sheva Alomar (Eva La Dare), uma mulher negra altamente qualificada, RE5 não consegue escapar completamente da estética do white savior e suas implicações.

Porém seria de má fé reduzir a perspectiva do jogo puramente aos seus elementos menos refinados: até certo ponto, Resident Evil 5 busca contar uma história sobre os males da colonização e a África em si como um palco de ensaio para as lutas que estão por vir no universo da franquia. Há paralelos tenebrosos sendo traçados entre políticas colonialistas dos séculos XIX e XX com a ameaça elevada do bioterrorismo. O problema é que tais reflexões nunca tomam o palco central da narrativa, escondidas atrás de leituras em um jogo que encontra seu ritmo na ação frenética e cooperativa.

Construído sobre a base incrivelmente sólida de Resident Evil 4, o quinto jogo da série busca expandir ainda mais as fronteiras do bioterrorismo, indo pela primeira vez ao Sul global e apresentando um sistema cooperativo rico e incrivelmente gratificante. Fora do jogo, a Capcom também claramente buscava expandir a audiência da série, abandonando de vez o clima de terror e construindo uma experiência de ação militar em torno de seu musculoso protagonista. Riscos foram tomados em Resident Evil 5 e, apesar de nem todos eles terem funcionado para todos os seus fãs, sua influência no futuro da série ainda o define como um de seus pontos de virada.

Cena do jogo Resident Evil 5. Jogamos com Chris enquanto ele mira num grupo de infectados que se aproxima dele. Chris é um homem caucasiano de cabelos pretos e curtos, segurando uma pistola com mira laser no canto esquerdo da tela. No canto inferior direito, dois círculos informam a munição disponível para a arma e a vida de Chris, assim como a de sua parceira, Sheva, num círculo acima. O grupo de infectados na frente dele segura armas rudimentares como porretes com pregos e garrafas vazias. À esquerda, um deles se ajoelha após ser acertado nas pernas. Chris mira no que está no meio dos três, se preparando para jogar uma garrafa.  Atrás deles, um quarto infectado se aproxima, segurando o que parece ser um poste de madeira. Eles estão num corredor estreito, com uma grade coberta por entulho na esquerda e uma parede de concreto encardida na direita com sacas de grãos empilhadas nos lados. Atrás dos infectados, vemos outra casa com as janelas fechadas. A luz do Sol é bloqueada parcialmente por algumas partes do teto dilapidado.
Resident Evil 5 foi o último jogo da série em que era impossível andar enquanto se atira (Foto: Capcom)

Anos após a destruição de Raccoon City e a dissolução da Umbrella, Chris entra para a B.S.A.A. (Bioterrorism Security Assessment Alliance, ou Aliança de Segurança e Avaliação em Bioterrorismo), uma entidade sob as ordens da ONU que busca auxiliar na contenção de ameaças biológicas pelo globo. Acreditando que sua antiga parceira Jill Valentine (Patricia Ja Lee) morreu anos atrás, ele parte para Kijuju, uma região fictícia do oeste africano, onde relatos preocupantes começam a mostrar sinais de uma nova ameaça biológica manufaturada. Lá ele encontra Sheva, membro do escritório local da organização, onde ambos dão de cara com um novo surto de mortos-vivos, dessa vez, pelas mãos de um inimigo familiar.

Se RE4 inaugurou uma nova era para os zumbis da Capcom, RE5 foi uma evolução natural desse caminho, dando a eles lógicas rudimentares e armas de fogo para se contrapor ao heroísmo de seus protagonistas. Se às vezes parece que não estamos mais jogando um jogo de terror, é porquê não estamos mais mesmo. Os inimigos são ainda mais ferozes e é bem mais fácil ser enterrado pelas hordas cada vez maiores, mas é aí que o sistema cooperativo faz o jogo brilhar – e onde também suas principais falhas aparecem.

No papel de Chris e Sheva, Resident Evil 5 é feito especificamente para ser jogado em dupla, com ambos os players tendo inventários separados e podendo trocar itens entre si, dependendo da situação; é uma aventura cooperativa incrivelmente bem balanceada e, como os melhores jogos coop fazem, leva ambos os jogadores à criarem repertórios particulares de ações e estratégias. Não pode ser exagerado: sua primeira experiência com o jogo deve ser com um amigo do lado, seja no sofá ou pela internet, caso seja possível.

Cena do jogo Resident Evil 5. Chris dá de cara com dois infectados em um túnel escuro. Chris é um homem caucasiano de cabelos pretos e curtos, usando uma calça bege e uma camiseta clara. Ele segura uma arma nas mãos e em suas costas podemos ver um longo rifle de precisão (à esquerda) e um facão preso em uma bainha (à direita). Na frente dele, no túnel parcialmente inundado, ele vê um infectado com um tentáculo grotesco no lugar da cabeça, se movendo em sua direção. O resto do corpo dele é normal, usando uma camiseta clara e uma calça jeans. Atrás dele, outro infectado também se aproxima, usando uma camiseta listrada e uma calça clara, com uma cabeça normal.
Assim como os Ganados do jogo anterior, os Majinis de Resident Evil 5 são especialmente vulneráveis à claridade, tornando granadas de luz em itens essenciais (Foto: Capcom)

Porém, RE5 não quebra completamente os padrões da franquia e oferece uma campanha inteiramente jogável em single player, mas sem adequar sua variedade de mecânicas à esse modo. Muito disso fica evidente na inteligência artificial de sua parceira, Sheva: os itens dela são tão importantes quanto os seus e, sozinho, sobra pra você ter que manejar dois inventários distintos, o que se torna ainda mais estressante quando fica claro que ela é bem mais liberal quanto ao uso de balas e itens de cura. Chega a ser agoniante ver ela despejar um pente inteiro de metralhadora em inimigos distantes sem acertar a maioria, ou desperdiçar uma cura completa sem necessidade. Jogar Resident Evil 5 sozinho é uma experiência bastante diferente de títulos anteriores, não impossível, mas certamente desencorajada pelas próprias mecânicas do título.

Graças à essa falta de adequação, Sheva virou um alvo fácil para apontar os vários problemas do título, se tornando uma das personagens mais odiadas da franquia, espelhando de certa forma os insultos jogados contra Ashley no quarto jogo e deixando transparecer um padrão preocupante no fandom da série, um padrão que fica terrivelmente claro quando, em Resident Evil 6, o parceiro de Chris é um homem cis branco e nenhuma de suas antigas companheiras é sequer citada pela narrativa. De fato, é possível ver como tanto Ashley quanto Sheva poderiam ser facilmente integradas nas campanhas do sexto jogo, o que deixa a ausência delas ainda mais gritante. Mas isso é papo para outro dia.

Cena do jogo Resident Evil 5. Chris (à direita) e Sheva (à esquerda) chegam até o salão principal de um templo em ruínas dentro de uma caverna.  No centro do tablado na frente deles há uma plataforma com escadas dando para um mecanismo circular. Atrás dessa plataforma há uma grande porta dando para uma parte mais interior da construção, com vasos espalhados na sua frente. No teto acima deles, um cristal reflete a luz solar que entra por uma abertura no teto. Uma grande pira acesa na extremidade esquerda do tablado também ilumina o cenário. Chris é um homem caucasiano de cabelos pretos, segurando uma pistola apontada para cima com ambas as mãos, usando uma calça bege e uma camiseta clara. Em suas costas podemos ver outros armamentos. Sheva é uma mulher negra de cabelos escuros, usando uma calça verde e uma camiseta regata roxa com adornos nos braços e com um rifle longo nas costas.
Dando uma de Indiana Jones, Chris e Sheva invadem templos proibidos e dão de cara com puzzles mortais (Foto: Capcom)

Resident Evil 5 adentra um novo continente, mas também traz a volta de Albert Wesker (D.C. Douglas), antagonista do primeiro jogo e líder traidor da equipe S.T.A.R.S. de Raccoon. Os planos megalomaníacos do personagem envolvem a eclosão de um novo vírus que irá destruir a maior parte da civilização e deixar apenas os “aptos” vivos. Sua rixa lendária com Chris chega à um clímax apocalíptico no final do quinto jogo, acontecendo na caldeira de um vulcão em erupção, onde alguns dos momentos mais estapafúrdios da franquia acontecem. É a conclusão perfeita para um jogo em que cada capítulo fica progressivamente mais absurdo que o anterior.

A transição da série do terror para a ação é completa em RE5, onde o ritmo da aventura envolve perseguições pela savana africana e boss fights em barcos e aviões. Apesar de não ser muito mais curto do que seu antecessor, é um jogo que parece muito mais dinâmico e rápido de se completar, afinando ainda mais o loop de jogabilidade de Resident Evil 4, que já era incrivelmente viciante. O jogo ainda conta com o clássico modo Mercenários, onde vários dos personagens antigos da franquia voltam como heróis jogáveis.

Cena do jogo Resident Evil 5. No modo Mercenários, jogamos com Rebecca Chambers, que usa um spray na cara de um infectado que vêm pela direita. Rebecca é uma mulher caucasiana de cabelos castanhos e curtos, usando um colete branco por cima de uma camiseta verde, com um lançador de granadas preso às suas costas. No canto inferior direito um círculo representa sua vida e a munição disponível para sua arma. Na parte superior da tela, da esquerda para a direita, vemos os pontos atuais, o contador de tempo para acabar a partida e o nível atual de seu combo. Vemos outros dois infectados se aproximando atrás dela com ferramentas. Podemos ver que eles se encontram em uma fábrica, com luzes alaranjadas emanando do chão.
Rebecca Chambers, protagonista de Resident Evil 0, volta como personagem jogável no modo Mercenários (Foto: Capcom)

O pós-lançamento do jogo também contou com duas campanhas extras, Lost in Nightmares e Desperate Escape, ambas estreladas por Jill Valentine, ambientadas em eventos que antecederam e cruzaram com a narrativa base. A primeira é a que chama mais a atenção, já que envolve a aparente morte da protagonista pelas mãos de Wesker, quando ela e Chris investigavam a mansão de Oswell E. Spencer (Adam D. Clark), fundador da Umbrella, à procura de informações sobre seu antigo líder. Ambientada no ambiente sombrio e contido, o cenário da DLC espelha a Mansão Spencer do primeiro jogo, contando com monstros semi-indestrutíveis e quebra-cabeças leves entre os cômodos da residência. É uma mudança bem vinda após a narrativa frenética do título principal, apesar de curta, e que agrega consideravelmente à experiência do jogo.

Desperate Escape é um interlúdio entre os últimos capítulos da trama principal, em que uma Jill recém curada da lavagem cerebral de Wesker têm que escapar com a ajuda de Josh Stone (T.J. Storm), mentor de Sheva e capitão da B.S.A.A. na área. Assim como Lost in Nightmares, não é uma aventura especialmente longa, levando cerca de uma hora para ser completada, mas que volta ao ritmo mais dinâmico do jogo base. A narrativa não impressiona muito, já que apenas amarra as pontas soltas deixadas pelos capítulos finais, mas ainda é um cenário divertido de se jogar, além de nos dar mais uma oportunidade de ver Jill em ação.

Cena do jogo Resident Evil 5. No conteúdo adicional Lost in Nightmares, jogamos com Jill Valentine. Ela está em uma grande sala de jantar iluminada por lâmpadas nas paredes. Jill é uma mulher caucasiana de cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo, usando uma calça bege e uma camiseta de manga longa azul-clara. Na sua cabeça, um boné da mesma cor. À sua direita, uma mesa de jantar longa com várias cadeiras organizadas e coberta por um pano branco. À sua esquerda, um relógio de parede mostra as horas. Várias janelas mostram o céu escuro do exterior e há quadros espalhados pela sala. Acima do cômodo vemos um nível superior. Dois círculos no canto inferior direito informam a vida de Jill e a munição disponível para sua arma, assim como as informações de seu parceiro, Chris.
Uma visita às raízes (Foto: Capcom)

O pacote completo Resident Evil 5 Gold Edition vêm com todas as DLCs de campanha e do modo Mercenários, além de hoje contar com uma versão remasterizada nos consoles de nova geração. Apesar de ainda não ter crossplay entre plataformas, as melhorias gráficas incluídas ajudam a realçar a beleza e o estilo que fizeram de RE5 o jogo mais bem vendido da série por muitos anos. Embora muitos ainda olhem para o filtro amarelado que cobre o jogo como um sinal da estética datada dos anos 2010, onde realismo nos videogames significava sujeira, ele adiciona ao ar doentio do título.

Isso não é, no entanto, uma desculpa para a visão caricata e honestamente ofensiva que o título tem da África Ocidental, se recusando até mesmo à dar um nome para o país onde se ambienta. Não é novidade Resident Evil (ou qualquer outra franquia) inventar locais fictícios quando fora dos Estados Unidos para ter mais controle criativo sobre os seus cenários, mas o quinto jogo não parece preocupado em fazer de Kijuju um lugar real habitado por personagens, coisa que até mesmo o vilarejo no centro de RE4 conseguiu fazer. De modo geral, há muito pouca personalidade posta ali, o que torna nossa tarefa de começar a alvejar os cidadãos infectados tão mórbida.

Também não escapa o fato da maior parte da narrativa ser centrada ao redor de seus personagens brancos, oferecendo poucas oportunidades para Sheva ou Josh assumirem as rédeas ou comentarem sobre as implicações óbvias das atitudes do resto do mundo para com a região. O jogo faz o melhor que pode para criar um elo entre Chris e Sheva, o que funciona muito bem quando se está jogando com um amigo, e menos quando somos forçados à ficar de babá de seu inventário. Como acontece em casos assim, sua personalidade foi reavaliada durante os anos e a maioria dos fãs admite que gostaria de vê-la novamente, seja em um novo título ou no possível remake de Resident Evil 5.

Cena do jogo Resident Evil 5. Jogando com Chris, controlamos uma metralhadora montada na caçamba de um veículo, atirando em infectados que nos perseguem pela savana africana emm motocicletas. Chris, no canto esquerdo da tela, é um homem caucasiano de cabelos pretos usando uma camiseta clara com mangas escuras, atirando a metralhadora. Abaixo dele, podemos ver outra pessoa atirando com outra metralhadora. No canto inferior direito um círculo informa o estado da arma. Eles e os perseguidores dirigem por um terreno desértico, com árvores pequenas e arbustos do lado direito e montanhas do lado esquerdo.
Um dos níveis planejados do jogo veria seus protagonistas tendo que cruzar um deserto com zumbis escondidos na areia (Foto: Capcom)

Considerando a recente onda de remakes popularizada por Resident Evil 2 em 2019, não há porquê não esperar que eventualmente a Capcom decida revitalizar o quinto título da série, se até o icônico RE4 conseguiu ser aprimorado para uma nova geração de jogadores. No entanto, as controvérsias ao redor do cenário e da narrativa de Resident Evil 5 deixam alguns incertos se uma reimaginação do jogo é prioridade da desenvolvedora. A dificuldade de se abordar a importância do jogo não apenas para a franquia, mas para a indústria continua a ser um dos grandes empecilhos para a sua reavaliação.

Resident Evil 5 é francamente um dos melhores jogos cooperativos já feitos, uma aventura cuja idade parece não ter datado suas mecânicas, mas deixado-as mais interessantes. Isso se reflete no seu número de vendas e na influência dele numa época em que cada vez mais séries de terror focavam no dinamismo de jogos de ação. Querendo ou não, RE5 foi um sinal claro de que havia um caminho rentável nesse gênero, mesmo que ele acabasse por descaracterizar a franquia.

Ao invés de sentir medo do que um remake de RE5 poderia ser, é mais fácil (e confortável) sentir curiosidade pela possível abordagem que a Capcom poderia dar, as coisas que seriam possíveis mudar e as novas e estimulantes narrativas que poderiam ser introduzidas na série. Como Resident Evil 5 será lembrado no futuro é uma pergunta que só pode ser respondida quando olhamos diretamente para sua integridade e, como tantos outros clássicos em tantas outras mídias, decidimos por nós mesmos quais são as coisas que valem a pena salvar.

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