Resident Evil 5 é um jogo incrivelmente racista. Devem existir formas melhores de começar um texto discutindo o legado do quinto jogo da série, mas é difícil apreciá-lo em 2025 sem antes ter que confrontar o fato de que suas problemáticas são bem mais evidentes hoje do que eram há 16 anos. Mas isso também não significa que essa discussão seja inédita. Desde seu primeiro trailer o jogo da Capcom já chamava atenção por sua apresentação caricata da África Ocidental, num país não especificado, onde os experimentos de um vilão nefasto contra a população local produziram resultados previsíveis. Mesmo colocando o herói de ação original da franquia, Chris Redfield (Roger Craig Smith) sendo auxiliado por Sheva Alomar (Eva La Dare), uma mulher negra altamente qualificada, RE5 não consegue escapar completamente da estética do white savior e suas implicações.
Porém seria de má fé reduzir a perspectiva do jogo puramente aos seus elementos menos refinados: até certo ponto, Resident Evil 5 busca contar uma história sobre os males da colonização e a África em si como um palco de ensaio para as lutas que estão por vir no universo da franquia. Há paralelos tenebrosos sendo traçados entre políticas colonialistas dos séculos XIX e XX com a ameaça elevada do bioterrorismo. O problema é que tais reflexões nunca tomam o palco central da narrativa, escondidas atrás de leituras em um jogo que encontra seu ritmo na ação frenética e cooperativa.
Construído sobre a base incrivelmente sólida de Resident Evil 4, o quinto jogo da série busca expandir ainda mais as fronteiras do bioterrorismo, indo pela primeira vez ao Sul global e apresentando um sistema cooperativo rico e incrivelmente gratificante. Fora do jogo, a Capcom também claramente buscava expandir a audiência da série, abandonando de vez o clima de terror e construindo uma experiência de ação militar em torno de seu musculoso protagonista. Riscos foram tomados em Resident Evil 5 e, apesar de nem todos eles terem funcionado para todos os seus fãs, sua influência no futuro da série ainda o define como um de seus pontos de virada.

Anos após a destruição de Raccoon City e a dissolução da Umbrella, Chris entra para a B.S.A.A. (Bioterrorism Security Assessment Alliance, ou Aliança de Segurança e Avaliação em Bioterrorismo), uma entidade sob as ordens da ONU que busca auxiliar na contenção de ameaças biológicas pelo globo. Acreditando que sua antiga parceira Jill Valentine (Patricia Ja Lee) morreu anos atrás, ele parte para Kijuju, uma região fictícia do oeste africano, onde relatos preocupantes começam a mostrar sinais de uma nova ameaça biológica manufaturada. Lá ele encontra Sheva, membro do escritório local da organização, onde ambos dão de cara com um novo surto de mortos-vivos, dessa vez, pelas mãos de um inimigo familiar.
Se RE4 inaugurou uma nova era para os zumbis da Capcom, RE5 foi uma evolução natural desse caminho, dando a eles lógicas rudimentares e armas de fogo para se contrapor ao heroísmo de seus protagonistas. Se às vezes parece que não estamos mais jogando um jogo de terror, é porquê não estamos mais mesmo. Os inimigos são ainda mais ferozes e é bem mais fácil ser enterrado pelas hordas cada vez maiores, mas é aí que o sistema cooperativo faz o jogo brilhar – e onde também suas principais falhas aparecem.
No papel de Chris e Sheva, Resident Evil 5 é feito especificamente para ser jogado em dupla, com ambos os players tendo inventários separados e podendo trocar itens entre si, dependendo da situação; é uma aventura cooperativa incrivelmente bem balanceada e, como os melhores jogos coop fazem, leva ambos os jogadores à criarem repertórios particulares de ações e estratégias. Não pode ser exagerado: sua primeira experiência com o jogo deve ser com um amigo do lado, seja no sofá ou pela internet, caso seja possível.

Porém, RE5 não quebra completamente os padrões da franquia e oferece uma campanha inteiramente jogável em single player, mas sem adequar sua variedade de mecânicas à esse modo. Muito disso fica evidente na inteligência artificial de sua parceira, Sheva: os itens dela são tão importantes quanto os seus e, sozinho, sobra pra você ter que manejar dois inventários distintos, o que se torna ainda mais estressante quando fica claro que ela é bem mais liberal quanto ao uso de balas e itens de cura. Chega a ser agoniante ver ela despejar um pente inteiro de metralhadora em inimigos distantes sem acertar a maioria, ou desperdiçar uma cura completa sem necessidade. Jogar Resident Evil 5 sozinho é uma experiência bastante diferente de títulos anteriores, não impossível, mas certamente desencorajada pelas próprias mecânicas do título.
Graças à essa falta de adequação, Sheva virou um alvo fácil para apontar os vários problemas do título, se tornando uma das personagens mais odiadas da franquia, espelhando de certa forma os insultos jogados contra Ashley no quarto jogo e deixando transparecer um padrão preocupante no fandom da série, um padrão que fica terrivelmente claro quando, em Resident Evil 6, o parceiro de Chris é um homem cis branco e nenhuma de suas antigas companheiras é sequer citada pela narrativa. De fato, é possível ver como tanto Ashley quanto Sheva poderiam ser facilmente integradas nas campanhas do sexto jogo, o que deixa a ausência delas ainda mais gritante. Mas isso é papo para outro dia.

Resident Evil 5 adentra um novo continente, mas também traz a volta de Albert Wesker (D.C. Douglas), antagonista do primeiro jogo e líder traidor da equipe S.T.A.R.S. de Raccoon. Os planos megalomaníacos do personagem envolvem a eclosão de um novo vírus que irá destruir a maior parte da civilização e deixar apenas os “aptos” vivos. Sua rixa lendária com Chris chega à um clímax apocalíptico no final do quinto jogo, acontecendo na caldeira de um vulcão em erupção, onde alguns dos momentos mais estapafúrdios da franquia acontecem. É a conclusão perfeita para um jogo em que cada capítulo fica progressivamente mais absurdo que o anterior.
A transição da série do terror para a ação é completa em RE5, onde o ritmo da aventura envolve perseguições pela savana africana e boss fights em barcos e aviões. Apesar de não ser muito mais curto do que seu antecessor, é um jogo que parece muito mais dinâmico e rápido de se completar, afinando ainda mais o loop de jogabilidade de Resident Evil 4, que já era incrivelmente viciante. O jogo ainda conta com o clássico modo Mercenários, onde vários dos personagens antigos da franquia voltam como heróis jogáveis.

O pós-lançamento do jogo também contou com duas campanhas extras, Lost in Nightmares e Desperate Escape, ambas estreladas por Jill Valentine, ambientadas em eventos que antecederam e cruzaram com a narrativa base. A primeira é a que chama mais a atenção, já que envolve a aparente morte da protagonista pelas mãos de Wesker, quando ela e Chris investigavam a mansão de Oswell E. Spencer (Adam D. Clark), fundador da Umbrella, à procura de informações sobre seu antigo líder. Ambientada no ambiente sombrio e contido, o cenário da DLC espelha a Mansão Spencer do primeiro jogo, contando com monstros semi-indestrutíveis e quebra-cabeças leves entre os cômodos da residência. É uma mudança bem vinda após a narrativa frenética do título principal, apesar de curta, e que agrega consideravelmente à experiência do jogo.
Já Desperate Escape é um interlúdio entre os últimos capítulos da trama principal, em que uma Jill recém curada da lavagem cerebral de Wesker têm que escapar com a ajuda de Josh Stone (T.J. Storm), mentor de Sheva e capitão da B.S.A.A. na área. Assim como Lost in Nightmares, não é uma aventura especialmente longa, levando cerca de uma hora para ser completada, mas que volta ao ritmo mais dinâmico do jogo base. A narrativa não impressiona muito, já que apenas amarra as pontas soltas deixadas pelos capítulos finais, mas ainda é um cenário divertido de se jogar, além de nos dar mais uma oportunidade de ver Jill em ação.

O pacote completo Resident Evil 5 Gold Edition vêm com todas as DLCs de campanha e do modo Mercenários, além de hoje contar com uma versão remasterizada nos consoles de nova geração. Apesar de ainda não ter crossplay entre plataformas, as melhorias gráficas incluídas ajudam a realçar a beleza e o estilo que fizeram de RE5 o jogo mais bem vendido da série por muitos anos. Embora muitos ainda olhem para o filtro amarelado que cobre o jogo como um sinal da estética datada dos anos 2010, onde realismo nos videogames significava sujeira, ele adiciona ao ar doentio do título.
Isso não é, no entanto, uma desculpa para a visão caricata e honestamente ofensiva que o título tem da África Ocidental, se recusando até mesmo à dar um nome para o país onde se ambienta. Não é novidade Resident Evil (ou qualquer outra franquia) inventar locais fictícios quando fora dos Estados Unidos para ter mais controle criativo sobre os seus cenários, mas o quinto jogo não parece preocupado em fazer de Kijuju um lugar real habitado por personagens, coisa que até mesmo o vilarejo no centro de RE4 conseguiu fazer. De modo geral, há muito pouca personalidade posta ali, o que torna nossa tarefa de começar a alvejar os cidadãos infectados tão mórbida.
Também não escapa o fato da maior parte da narrativa ser centrada ao redor de seus personagens brancos, oferecendo poucas oportunidades para Sheva ou Josh assumirem as rédeas ou comentarem sobre as implicações óbvias das atitudes do resto do mundo para com a região. O jogo faz o melhor que pode para criar um elo entre Chris e Sheva, o que funciona muito bem quando se está jogando com um amigo, e menos quando somos forçados à ficar de babá de seu inventário. Como acontece em casos assim, sua personalidade foi reavaliada durante os anos e a maioria dos fãs admite que gostaria de vê-la novamente, seja em um novo título ou no possível remake de Resident Evil 5.

Considerando a recente onda de remakes popularizada por Resident Evil 2 em 2019, não há porquê não esperar que eventualmente a Capcom decida revitalizar o quinto título da série, se até o icônico RE4 conseguiu ser aprimorado para uma nova geração de jogadores. No entanto, as controvérsias ao redor do cenário e da narrativa de Resident Evil 5 deixam alguns incertos se uma reimaginação do jogo é prioridade da desenvolvedora. A dificuldade de se abordar a importância do jogo não apenas para a franquia, mas para a indústria continua a ser um dos grandes empecilhos para a sua reavaliação.
Resident Evil 5 é francamente um dos melhores jogos cooperativos já feitos, uma aventura cuja idade parece não ter datado suas mecânicas, mas deixado-as mais interessantes. Isso se reflete no seu número de vendas e na influência dele numa época em que cada vez mais séries de terror focavam no dinamismo de jogos de ação. Querendo ou não, RE5 foi um sinal claro de que havia um caminho rentável nesse gênero, mesmo que ele acabasse por descaracterizar a franquia.
Ao invés de sentir medo do que um remake de RE5 poderia ser, é mais fácil (e confortável) sentir curiosidade pela possível abordagem que a Capcom poderia dar, as coisas que seriam possíveis mudar e as novas e estimulantes narrativas que poderiam ser introduzidas na série. Como Resident Evil 5 será lembrado no futuro é uma pergunta que só pode ser respondida quando olhamos diretamente para sua integridade e, como tantos outros clássicos em tantas outras mídias, decidimos por nós mesmos quais são as coisas que valem a pena salvar.
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