Na matemática, o uso do delta, quarta letra do alfabeto grego, serve para denotar a diferença entre duas variáveis. Logo, ele é associado com processos de mudança e variação. Ao refazer o clássico Metal Gear Solid 3: Snake Eater, a Konami optou por mudar sutilmente seu título, incluindo tal símbolo ao invés do número três. A desenvolvedora japonesa, que voltou à adentrar o cenário dos jogos digitais ano passado com o remake de Silent Hill 2, espera que reintroduzir alguns de seus títulos mais aclamados ao grande público seja um primeiro passo para renovar suas franquias e restaurar a boa fé após anos de controvérsias e más decisões criativas, das quais a mais notável envolve ninguém menos do que o criador de Metal Gear.
O “divórcio” entre Hideo Kojima e a Konami foi eternizado no palco do The Game Awards, onde o apresentador Geoff Keighley informou que, apesar de The Phantom Pain ter recebido o prêmio de melhor Jogo de Ação e Aventura do ano, o lendário criador não foi permitido de participar da cerimônia, com a estatueta sendo recebida por Kiefer Sutherland, intérprete de Snake no jogo. Bem antes disso, no entanto, estava claro que o jogo seria o último de Kojima na série. É claro que ele não foi o único responsável pelo sucesso de Metal Gear, mas é impossível não associar seu nome com a série, ainda mais num ano em que ele volta a lançar mais um jogo original e já começa a trabalhar em novos projetos.
Por todas essas razões, é estranho ver um novo jogo de Metal Gear Solid sem nenhum envolvimento dele, mas quase que amarrado à um de seus trabalhos mais badalados. Apesar do título, o que menos se vê em Delta é variação; semelhante ao remake de The Last of Us lançado em 2022, é mais uma nova pintura do que um novo modelo, reprisando com fidelidade, mas pouca paixão, a saga do nascimento de Big Boss.

Em 1964, no auge da Guerra Fria, um soldado americano é mandado atrás de linhas inimigas para resgatar um cientista soviético desertor. Seu codinome é Naked Snake (David Hayter) e essa missão o mudará para sempre. Prequel da série imortalizada no PlayStation 1, Snake Eater é uma história sobre mentores e aprendizes, tanto um thriller de espionagem quanto um pastiche de filmes de ação e também uma jornada profundamente espiritual para seu protagonista.
Delta reproduz essa narrativa ponta por ponta de um jeito que evidencia não o apreço pela sua forma, mas o medo de se desviar em qualquer aspecto. Apesar de ser completamente refeito na Unreal Engine 5, não há qualquer criatividade tomada em seu design ou liberdade em sua interpretação do jogo original. Parece quase um sacrilégio que uma série tão prezada por tomar riscos seja revivida de maneira tão anti-natural.
Por mais que a trama seja repleta da identidade de Kojima, é impossível não sentir sua ausência do projeto: é difícil pensar que ele gastaria tanto tempo e recursos em algo tão fútil, até mesmo se sua relação com a Konami não estivesse fraturada de forma irreparável. Então, por mais que Delta mantenha seu nome nos créditos, ele não o faz como homenagem, mas por faltar com nomes próprios para pôr frente e centro. Ele não engaja com o Snake Eater original, meramente reproduz suas qualidades em gráficos fotorrealistas, esperando que as suas decisões funcionem mas sem interesse em entender o porquê.

Trazer Metal Gear Solid 3 para o mesmo nível de realismo dos jogos da atual geração também traz uma nova leva de expectativas para o seu gameplay e, de certa forma, Delta as atende: tanto a câmera quanto os controles estão melhor organizados para atender as necessidades do jogador moderno, seus menus estão mais fáceis de navegar e a ação de momento a momento fica mais fluída. Porém, ainda é uma visão datada do que Metal Gear pode ser, ainda mais considerando os avanços de The Phantom Pain, título que faz 10 anos em setembro deste ano.
O jogo até mesmo reproduz algumas das limitações técnicas da época do PlayStation 2, dividindo-se em áreas pequenas, quebradas por telas de carregamento. Um tipo de comprometimento com o passado que beira ao fetichismo, essa abordagem serve para datar o jogo original, não para elevá-lo como os remakes bem sucedidos de Resident Evil ou Final Fantasy VII.

A escolha de refazer especificamente o terceiro título da série não é nada senão estratégica: a história mais antiga na cronologia abandona vários dos elementos de ficção científica dos primeiros dois títulos, trocando o cenário moderno pelas selvas fictícias da União Soviética. Ao invés de clones e robôs gigantes, a ameaça de destruição nuclear assume papel central num drama entre soldados e suas consciências. A escrita estranhamente profética e nada sutil de Kojima e seus colaboradores, Shuyo Murata e Tomokazu Fukushima, encontra seu auge nos monólogos expositivos e ao mesmo tempo introspectivos de The Boss (Lori Alan), a “maior soldado que já existiu”, que aparece periodicamente para dizer algumas das linhas mais marcantes da franquia.
Após ser traído por ela, sua mentora, Snake precisa aceitar a missão de acabar com sua vida para impedir que a Guerra Fria se aqueça, destruindo um novo tipo de tanque experimental no processo enquanto enfrenta a infame Unidade Cobra e detém uma facção belicosa do exército soviético. Preso entre as vontades de duas superpotências e os encantos de uma agente dupla com propensão à decotes reveladores, Snake Eater é uma história sobre os ciclos de conflito do século XX e as justificativas usadas para a sua manutenção e, em meio aos plot twists mirabolantes e personagens escrachados, há um núcleo quase espiritual que, anos depois, ainda permanece potente e cativante.
Mas, assim como a maioria dos outros elementos, essa história é mérito original, não da nova versão, que se recusa veementemente à destacar qualquer desvio do enredo. Ao iniciar o jogo, recebemos um aviso de que seus elementos problemáticos foram mantidos com a intenção de preservar a visão original da obra, sinalizando mais uma vez que o remake não tem nada novo à oferecer, que sua mera existência é tão difícil de justificar quanto os conflitos representados na narrativa. Não há como afirmar como o próprio Kojima abordaria um projeto para refazer Metal Gear Solid 3, mas é impossível imaginar que ele faria algo tão covarde quanto Delta.

Apesar dos elementos mais antigos, Snake Eater ainda é um tremendo jogo, digno da adoração dos fãs da franquia e de seu lugar na história dos videogames. O sistema de camuflagem, a necessidade de caçar animais pela selva para manter a energia, as batalhas incríveis contra os seus chefões: tudo permanece tão bom quanto era em 2004. Além disso, Delta restaura parte do conteúdo perdido em várias das outras versões do terceiro jogo, incluindo um modo multiplayer, um mini jogo com macaquinhos da série Ape Escape (ou Bomberman, se você jogar no Xbox) e a demo de um jogo hack’n’slash que nunca será lançado.
No entanto, na conjuntura atual da indústria dos videogames, é impossível ver Metal Gear Solid Δ: Snake Eater como algo além de uma tentativa desesperada de restaurar a fé em uma franquia que não parece possuir identidade alguma sem o envolvimento de seu criador. Numa época em que jogos blockbusters levam anos e milhões de dólares para serem produzidos, um dos jogos de furtividade mais importantes de todos os tempos merecia uma reimaginação bem mais interessante.
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