Na mitologia, as sereias eram vilãs cruéis, destinadas a hipnotizar e afogar os gananciosos homens que as procuravam pela beleza e pelo lascivo fator carnal. Na minissérie da Netflix, a criadora Molly Smith Metzler inverte a lógica histórica e coloca quem assiste em pé de igualdade à protagonista.
Devon (Meghann Fahy) nunca se sentiu feliz ou realizada na cidade de Buffalo, onde mora com o pai sênil e acumula farras e traições, namorando por fora o chefe casado Ray (Josh Segarra). Quando, depois de outra prisão por dirigir alcoolizada, ela manda a mensagem-código para a irmã e não recebe resposta, decide tomar controle do destino.

Simone (Milly Alcock) trabalha numa paradisíaca residência praiana como assistente de Michaela (Julianne Moore), uma ricaça que gere um santuário de aves e gasta a fortuna do marido em bailes de gala e na folha de pagamento de centenas de funcionários. Fora de casa desde que largou a faculdade, Simone cortou laços com o pai, relapso no passado e quem a perdeu na briga pela custódia na justiça.
No encontro indesejado entre irmãs, fica claro que Simone está metida em algo incomum. Ela apagou a laser as tatuagens, trocou o estilo de roupa e de atitude, e vive para servir Kiki, o apelido que só ela tem direito de usar com a empregadora. Devon suspeita de um culto, ou uma seita muito bem organizada, que se esconde atrás dos pássaros e das vibes positivas que envolvem empregados impedidos de comentar o ambiente e até uma ex-esposa desaparecida.

Sereias, portanto, mira numa miríade de realidade e ficção que combina com os sons idílicos e a sirene alta que serve de trilha sonora, junto das ondas que quebram na praia e dos ganidos animais. Por outro lado, a atitude séria e sem tempo para brincadeira de Devon aterra a série num campo dividido.
Quem são as sereias que nomeiam a produção? Michaela comanda um exército de donas de casa dondocas com talões de cheque sem limite máximo. Simone encanta Ethan (Glenn Howerton), um quarentão que queima a própria herança sem ver a quem. E Devon, tentando fugir do álcool, troca a garrafa pelo sexo rápido com qualquer homem disponível, não demorando para reunir um trio de don Juans que a segue onde for preciso.

Porém, na raiz de todo mal, cresce a figura de Peter (Kevin Bacon), o dono da propriedade e detentor do dinheiro e do poder. Ele é relaxado, não entra na pilha de Michaela e comanda o castelo com calmaria e muita autoridade. Jose (Felix Solis), o motorista que também atua como faz-tudo e seu braço-direito, deixa claro para a patroa que, apesar de tudo, quem dá as cartas ali é o senhor Kell.
Em cinco episódios, Sereias brinca com o horror situacional só para entender, tarde demais, que a história muito mais se beneficia do humor que divide as classes sociais. Quando Bruce (Bill Camp), aparece por acaso no local, as filhas reagem mal – mas o roteiro finaliza a alquimia que toda “série limitada de prestígio” quer criar para si.

A primeira temporada de The White Lotus reconfigurou a mente dos produtores de Televisão, que tentam incessantemente recriar a atmosfera paradisíaca que contradiz os temas violentos e inescrupulosos do roteiro. Aqui, os ricos não são perseguidos e exterminados: Simone quer se juntar à mesa, e Devon quer entender o limite entre o proveito e o abuso.
No episódio 4, Persephone, os personagens se reúnem num jantar desconfortável e terrivelmente cômico, tirando da cena o melhor que Sereias propicia em sua total duração. É interessante ver os pobres coitados de Buffalo enxergando a vida boa que o 1% desfruta sem perceber; isto, é claro, aliado ao olhar de pena e ambivalência que Peter e cia despejam nos hóspedes.

Baseando-se numa peça de teatro, Elemeno Pea, escrita por ela mesma, Metzler recruta para a direção três nomes distintos: Nicole Kassell (de Watchmen e The Leftovers), Quyen Tran (de The Pitt) e Lila Neugebauer (de Passagem e Maid). As mulheres navegam pela atmosfera difusa da produção, vertendo para o quê teatral das discussões e dos cenários, que são poucos e costumeiramente são preenchidos por conversas e brigas comedidas.
De maneira surpreendente – e sem o apoio de grandes veículos ou campanhas recheadas de eventos, Sereias apareceu em 4 categorias do Emmy 2025: Direção, Montagem e Figurinos Contemporâneos, para o episódio Exile, e Melhor Atriz em Minissérie para Meghann Fahy. Superando séries tidas como favoritas, o conto de mistério e riquezas da Netflix encantou, também, os votantes da Academia.
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