Apesar da “paificação” dos jogos ser considerada uma moda recente, o foco nas dinâmicas entre adultos e crianças sempre foi lugar comum no gênero do Terror. No primeiríssimo Silent Hill, de 1999, nós controlávamos um homem desesperadamente à procura de sua filha no nevoeiro interminável. É uma maneira deveras eficiente de, em um meio interativo, forçar quase imediatamente uma ligação emocional entre o jogador e a tarefa dada a ele pela narrativa. Não é algo que precisa ser explicado ou construído antes para fazer sentido; simplesmente é.
Em Resident Evil: Village, sequência direta de Resident Evil 7: biohazard, a relação entre o papel de paternidade e proteção novamente é tema central. Fazem 3 anos desde que Ethan (Todd Soley) e Mia (Katie O’Hagan) conseguiram escapar da residência dos Bakers, enterrando os restos de Eveline (Paula Rhoades) no passado e formando uma nova família em um canto remoto da Europa, sob a vigilância constante de Chris Redfield (Jeff Schine) e o resto de seu esquadrão. Juntos, eles têm Rose, uma menina com apenas seis meses de idade, mas por quem ambos fariam de tudo. No meio de uma noite aparentemente normal, tudo muda e Ethan precisa embarcar mais uma vez em uma jornada de dor e sobrevivência para manter sua família à salvo.
Abrindo com Mia lendo um conto de fadas local para Rose em uma animação do estúdio polonês Platige (responsáveis pelo episódio Noite de Pescaria de Love, Death + Robots), Village imediatamente separa o tom do resto da franquia. Há uma aura de mistério envolvendo o cenário, uma tensão entre Mia e Ethan que não fica imediatamente clara, mas que põe em evidência a aspiração temática do roteiro junto com a animação: essa história é uma fábula macabra, em que nem todos são aquilo que aparentam ser e não há final feliz para seus heróis.

Ethan é uma pessoa bem diferente da que era há três anos — em mais de uma maneira. Depois de passar por um treinamento militar, ele se sente mais ou menos seguro na sua nova casa em um país não especificado, mas que é provavelmente uma versão fictícia da Romênia. Esse treinamento vem à tona quando Chris subitamente vira sua vida de cabeça para baixo e ele se encontra como o único sobrevivente de um acidente de carro nas cercanias de um vilarejo remoto, sem sua filha ou sua esposa.
Koshi Nakanishi, diretor de Resident Evil: Requiem, foi criticado por postular que Leon Kennedy não é uma “boa escolha” para o Terror, uma vez que o personagem já passou por tanta coisa que é difícil assustá-lo, despertando a ira dos fãs que anseiam por revê-lo. No entanto, esse é um padrão que se repete diversas vezes não só na franquia, mas no gênero como um todo. Na sequência de Dead Space, a desenvolvedora Visceral Games precisou abrir com seu protagonista numa camisa de força para criar algum senso de perigo já que, assim que recebe sua primeira arma, Isaac Clarke vira praticamente um herói de ação. Ao desenvolver Aliens: O Resgate, James Cameron sabia que recriar a mesma tensão do filme original não seria apenas impossível, mas também um desserviço à personagem vivida por Sigourney Weaver.
Não é que o Terror leva obrigatoriamente à Ação, mas sim que um senso de progressão de narrativas é mais natural do que fingir que não há nenhum. Resident Evil: Village entende que para Ethan não ser mais apenas um avatar dos jogadores e sim um participante ativo da história, os sustos empregados no título anterior são insuficientes. Agora, ele precisa lutar de volta, o que significa que você precisa lutar de volta.

É impossível deixar de notar as inúmeras semelhanças entre Village e Resident Evil 4, o primeiro título da série à fazer o salto entre gêneros com sucesso absoluto. Além do inventário em formato de maleta e a presença de um personagem oferecendo serviços comerciais em troca de moedas e tesouros, há o fato de que o cenário inteiro remete à aventura de Leon pela Espanha rural, com a presença de um vilarejo decrépito, um castelo infestado por monstros e o resgate de uma figura feminina. Ambos são contos de fadas, mas enquanto RE4 encobre o seu com uma malha de terror camp, Village se arma com referências visuais ao horror gótico de Drácula e Frankenstein.
Evidente em seu primeiro trailer, os inimigos que Ethan enfrenta dessa vez parecem saídos diretamente das obras de Stoker e Shelley, formando legiões de licanos, corpos reanimados e pelo menos uma mulher pálida com um gosto por sangue humano. Um deleite visual para todos aqueles obcecados com a estética de vampiros, lobisomens e outras coisas que se escondem no véu entre o aterrorizante e o romântico, a narrativa de Resident Evil: Village faz os seus malabarismos para encaixar todas essas criaturas no cânone abarrotado da série, mas sabemos que tudo não passa de uma desculpa para tentar ideias novas, e é justamente isso que faz desta uma entrada tão marcante na franquia.
Completamente separada de seus antecessores à não ser por seus personagens e suas mecânicas, jogar Village oferece um lembrete poderoso da variedade de temas e subgêneros que Resident Evil consegue abarcar em seu interior sem soar destoante, fazendo da bagunça sua força motriz. Sim, lobisomens agora existem e você precisa atirar neles com um revólver magnum de prata, se liga e entra no ritmo.

Assim que chega no vilarejo sem nome, Ethan é confrontado por algumas das bestas que vagam por lá e dá de cara com alguns dos sobreviventes, que parecem idolatrar a figura de Mãe Miranda (Michelle Lukes), a líder do lugar e mestra dos quatro lordes que governam as terras. Assim como os Baker no jogo anterior, a “família” de Miranda forma o núcleo de vilões do game, cada qual com sua própria região e lacaios devotados à sua segurança. Embora pareça inicialmente um metroidvania em sua estrutura, o jogo é linear, com uma ordem fixa para derrotar os chefes e partes do mapa que ficam inacessíveis após determinados eventos. Com apenas algumas horas a mais do que Resident Evil 7, as ambições de Village claramente não são a de reinventar completamente as mecânicas da franquia.
Apesar dos suprimentos ainda serem escassos, o inventário é bem mais leniente com a maneira que você maneja seus estoques, com os ingredientes necessários para fazer munições e kits de primeiros socorros não tendo que ser encaixados dentro da maleta junto com armas e outros usáveis. Isso tira bastante o estresse de ter que controlar os itens que você pega pelo cenário, dinamizando a movimentação e o avanço pelas fases. Não há como armazenar armas em um baú, mas você pode vendê-las ao Duque (Aaron LaPlante), um comerciante obeso que vende melhorias para suas armas, receitas de itens e até mesmo pratos de comida que permanentemente melhoram as capacidades físicas de Ethan. Geralmente você vai estar carregando pelo menos um tipo de arma diferente, então não tem porque ficar guardando aquelas que você não usa mais.
Os quatro Lordes do vilarejo formam uma pseudo-família de vilões, todos infectados pelo mesmo organismo e frutos dos experimentos de Miranda para ressuscitar sua própria filha, perdida há anos. Lady Dimitrescu (Maggie Robertson, cuja interpretação lhe rendeu o prêmio no The Game Awards de 2021), a vampiresca mulher gigante que pegou a internet de surpresa assim que foi apresentada pela primeira vez, forma a versão mais clássica de um perseguidor normal da série, andando ameaçadoramente pelos cômodos de seu castelo preparada para te dar o bote. Suas três filhas, tão sedentas pelo sangue de Ethan quanto sua mãe, são psicopatas capazes de se transformar num enxame de moscas à qualquer momento, não perdendo a oportunidade de frustrar o seu caminho e te fazer dar meia volta.

Mesmo não sendo nem de longe tão assustador quanto seu antecessor, Village contém uma das sequências mais deturpadas de toda a franquia, na forma da mansão solitária de Donna Beneviento (Andi Norris), recheada apenas por memórias e bonecas, empertigada ao lado de uma cachoeira. Uma obra-prima de horror e tensão, ela forma um segmento que capitaliza em cima das qualidades mais clássicas da série, misturando puzzles com soluções inesperadas e imagens de terror psicológico surreais.
O que começa com uma casa enorme e deserta termina num poço dentro de um porão com um elevador quebrado. No vai e volta entre salas, quebra-cabeças envolvendo manequins de sua esposa e um filme caseiro macabro, os cenários vão mudando e, mesmo não havendo um único inimigo no segmento inteiro, sentimos cada vez mais a escuridão se fechando e o chão de segurança estabelecido pelas armas e itens de cura sendo tomados de nós. A resolução chega com um horror impossível de ser descrito, e representa outro argumento de Resident Evil: Village como um dos ápices da diversidade textual da série, criando uma experiência completa dentro de outra e casando-as sem atrito.

Depois de um segmento tão tenso, o jogo oferece o próximo chefão como oportunidade de descompressão, direto e simples, com um desafio nominal. Afinal, Salvatore Moreau (Jesse Pimentel) nunca foi o filho favorito de Miranda por motivos óbvios: claramente o experimento mais falho da matriarca, ele é um corcunda anfíbio que secreta uma resina espessa e, em água, se transforma num mutante ainda mais horrendo.
Durante sua jornada, Ethan dá de cara com pistas de presença de Chris nos eventos da trama, revelando outro dos aspectos mais ousados de Village. Anos após o incidente na Mansão Spencer que o marcaria para o resto da vida, o Chris Redfield do título mais recente é definido pela desconfiança, rude e assombrado pela certeza de que só ele é equipado para fazer o sacrifício definitivo. Também um protetor falho, ele representa quase um espelho para o protagonista, que passa boa parte da narrativa frustrado com tudo e todos ao seu redor, desesperado em rever sua família. Esses dois homens, tão similares em seus motivos, são mantidos separados por suas circunstâncias até o final derradeiro da aventura.
Antes de enfrentar Mãe Miranda, Ethan precisa passar por seu último tenente: Karl Heisenberg (Neil Newbon), o falastrão que comanda o metal assim como o mutante da Marvel, mas guiado apenas por sua própria busca de poder, construindo um exército de cadáveres reanimados e fundidos com aparatos mecânicos. Diferente de seus camaradas, ele pretende tomar o trono de Miranda para si, esperando utilizar os poderes de Rose para dar cabo de sua criadora. Apesar de não entender porque sua filha está sendo alvo dessas ambições, Ethan segue imparável em sua busca para reencontrá-la, confrontando os poderes magnéticos de Heisenberg numa das boss fights mais inusitadas de toda a série.

No final aparente de sua aventura pelas terras belas e macabras de Mãe Miranda, nosso herói não revela apenas a realidade de seus antagonistas, mas também a de si próprio. Resident Evil: Village tem muito provavelmente a virada de ato mais melancólica da série, numa narrativa marcada pela estética do terror gótico, em que os monstros são tão humanos quanto qualquer um e o mal, apesar de derrotado, jamais é esquecido.
De certo modo, a franquia sempre abraçou esse aspecto do gênero, se utilizando da ameaça de vírus e armas biológicas para centralizar a ganância humana como o verdadeiro inimigo, e as tragédias decorrentes dela como inevitabilidades de seus efeitos. “Mas é verdade que, quando as rodas da justiça começam a virar, nada é capaz de pará-las. Nada.”, é o que Jill Valentine nos avisa em seu icônico monólogo do início de Resident Evil 3.
E mesmo assim, Village se despede tendo confortavelmente a história mais íntima da franquia, se aproveitando da perspectiva em primeira pessoa talvez ainda mais que seu antecessor e nos colocando no lugar de Ethan não para efeito de susto ou de uma fantasia de poder, mas para nós vivenciarmos sua tragédia em carne nem-tão-viva. Quando pressionados por conteúdo adicional, os desenvolvedores da Capcom dobraram essa aposta em Shadows of Rose, praticamente um epílogo estendido do jogo que busca fazer sentido de seus eventos pela perspectiva da filha de Ethan, fornecendo várias sequências memoráveis, incluindo uma outra visita à mansão Beneviento talvez ainda mais assustadora do que a primeira.

Ausente desde Resident Evil 6, o modo Mercenários fez seu retorno em Village, apesar de vir contando com poucas arenas e apenas Ethan como personagem jogável. Junto com a DLC de história também veio a oportunidade de jogar com Chris, Lady Dimitrescu e Heisenberg, dando fôlego novo à experiência, que coloca em evidência a qualidade do loop de gameplay do jogo e, assim como títulos anteriores, é uma oportunidade excelente de se preparar para níveis de dificuldade maiores e conquistar tudo o que o jogo tem para oferecer.
A perspectiva em terceira pessoa adicionada junto com essas expansões (e obrigatória em Shadows of Rose) também incentiva novos saves, mas é uma tradução imperfeita do intuito original do jogo. Apesar de novas animações para a campanha principal, Resident Evil: Village foi feito para se jogar em primeira pessoa, e o que perdemos com a mudança de perspectiva não é completamente recuperado, ainda mais quando o jogo ainda nos impede de ver o rosto de Ethan e a maioria das cenas voltam para o formato original. Com o anúncio de que Requiem também adotaria essa câmera híbrida, surgiu a preocupação de que algo seria perdido entre elas, mas os desenvolvedores afirmam que o jogo foi projetado logo do início para fazer bom uso de ambas.

Resident Evil: Village é maior do que a soma de suas partes, no sentido de que a coleção de sustos e batalhas memoráveis que ele oferece não totalizam a gravidade de sua experiência. É um dos jogos da série que melhor oferece a oportunidade de habitar um mundo e de se apaixonar pouco à pouco pela totalidade de seus aspectos. Apesar de compartilhar qualidades com os melhores capítulos da franquia, ele se excede em criar um clima único que, acoplado com uma história verdadeiramente emocionante e ousada em sua melancolia, torna-se verdadeiramente singular.
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