Antes que qualquer insinuação seja feita, a equipe criativa de Sandman quer esclarecer um ponto: o pesadelo ao redor do nome e da figura de Neil Gaiman nada tem a ver com o encerramento da série na segunda temporada. De acordo com eles, o plano sempre foi de contar a história de Sonho em duas levas de capítulos, acompanhados de alguns especiais.
E aqui eles estão. A temporada, lançada em dois blocos ao longo de julho, começa buscando a redenção de Morpheus (Tom Sturridge), que entende a outrora indiferença para com o mundo dos humanos como uma falha a ser remendada. Com os riscos maiores, Sonho quer reunir os Perpétuos e entender o próximo passo.

Mas Lúcifer (Gwendoline Christie), antiga rival do Senhor do Sonhar, dá a cartada de despedida. Aposentando-se de maneira abrupta do posto de governante do Inferno, a personagem deixa a chave do purgatório aos cuidados de Morpheus, que se vê sem reação e, pior ainda, cheio de visitas.
O salão de festas do Sonhar é preenchido por todo tipo de figura. Dos deuses nórdicos aos palhaços do caos, dos demônios insatisfeitos aos povos das Fadas e até alguns anjos de Deus, todos querem saber que fim terá a posse do Inferno.

Na segunda temporada, Sandman abraça a cacofonia criativa dos quadrinhos e se prova como a série perfeita para os fãs de Percy Jackson que já passaram da idade do colégio. A mistureba de crenças, mitos e ícones ajuda a tirar a seriedade do clima, já que a performance do protagonista mantém a máxima tônica e pouco expressiva.
O Sonho de Sturridge é um homem calmo, controlado e odioso. Com energia de alguém com pressão baixa, Morpheus decide e pondera sobre o destino do Inferno com a mesma precisão e coesão que reúne os irmãos, em cenas tocantes de remorso e muitas brigas abafadas.

Os já conhecidos rostos de Desejo (Mason Alexander Park), Desespero (Donna Preston) e Morte (Kirby Howell-Baptiste) se juntam aos recém-chegados Destino (Adrian Lester) e Delírio (Esme Creed-Miles). Para a infelicidade deles, o sumiço anunciado de Destruição (Barry Sloane) continua sangrando sem sinal de cicatrizar.
Acompanhando Delírio na busca pelo irmão renegado, Sonho se depara com um homem destinado a obliterar e cansado de fazê-lo. O cão Barnabas (voz de Steve Coogan) é companheiro de Destruição, que passa seus dias e noites escrevendo poesias e versos.

Da maneira que só Sandman sabe tratar da crueldade em espelho ao otimismo, a temporada segue para a origem de Orpheus (Ruairi O’Connor), o filho do protagonista que caiu na armadilha do Rei Hades. Os capítulos que encenam o casamento do jovem com Eurydice (Ella Rumpf) e sua eventual missão no Submundo são feitos para impressionar e magoar, com destaque para a cena que ele canta e fascina os governantes do local.
Morpheus, tão espectador quanto quem assiste de fora, toma a decisão que definirá o futuro que Destino viu ser escrito no enorme livro que carrega para cima e para baixo. O sangue familiar é derramado, e as Bondosas partem para sua função primordial: cortar o novelo e acabar com uma vida.

A segunda parte da temporada, em cinco capítulos de muita correria contra o inevitável, mostra que Morpheus cumpriu sua missão na Terra – e talvez a ideia de descansar não seja assim tão terrível. Para a tristeza de seus companheiros de reino, que lamentam a morte do lorde.
Lucienne, a bibliotecária interpretada com tenacidade por Vivienne Acheampong, rouba a cena e retém a dualidade das lágrimas de ternura e luto. Nuala (Ann Skelly), vinda do povo das Fadas mas enamorada pela rotina do Sonhar, representa uma adição recente mas marcante na vida de Sonho, mostrando que mesmo no fim de sua vida ele era capaz de impactar quem quer que fosse. Os fiéis Gilbert (Stephen Fry), Matthew (Patton Oswalt) e Merv (Mark Hamill) expressam o luto de maneiras distintas.

Até mesmo o Coríntio (Boyd Holbrook) volta ao centro da ação, numa personificação menos sádica do Pesadelo. Tão charmoso que captura a atenção de Johanna Constantine (Jenna Coleman), recrutada por Morpheus para ajudar na missão que envolve algumas pontas soltas da temporada anterior.
Lyta (Razane Jammal) pega para si a missão de antagonizar os dias derradeiros de Morpheus, especialmente quando seu filho Daniel é sequestrado e a mulher julga o Perpétuo como culpado. Claro que o rosto por trás da falcatrua é Loki (Freddie Fox) e seu amante Puck (Jack Gleeson), o feérico que inspirou uma das peças de Shakespeare.

A história de gays trambiqueiros e malvados é selada pelas trapaças do deus nórdico, que cutuca a paciência e tosta a honestidade de Morpheus, com um ultimato insensível que lhe custa o último suspiro. Morte, sempre tão educada e solicita, leva o irmão mais novo para si, dando espaço para que um novo Sonho ascenda.
No momento mais surpreendente e gratificante da segunda temporada, Sandman coloca a magia para funcionar e envelhece Daniel, agora um adulto de partes mortais e imortais misturadas ao cerne de sua função como Perpétuo. O ator para viver com tal imponência o novo Senhor Formador? Jacob Anderson, obviamente.

Meloso e melancólico, o episódio 11 é todinho no velório de Morpheus, com quase todos os personagens passando para prestar suas condolências ou só espiar o caixão rumar ao infinito escuro das estrelas (e o Batman de Robert Pattinson quase marcou presença). Depois, o capítulo 12 funciona como um prelúdio da saga, acompanhando a Morte no único dia de folga que tira todo século.
Dona do episódio mais aclamado e honesto da série, a personagem de Howell-Baptiste caminha por uma Londres nublada, de encontro a um jornalista ambiental que pensa em acabar com a própria vida. Na trama, o diretor do projeto completo Jamie Childs arremata a narrativa sem a presença de Sonho, evidenciando as melhores qualidades de Morte e da atriz por trás da foice.
A segunda temporada de Sandman, embora ciente de seu propósito conclusivo, também deixa o amargo sabor das possibilidades. Em momentos menores, personagens como Shakespeare, Wanda (Indya Moore), a Rainha Nada (Deborah Oyelade), Mad Hettie (Clare Higgins) e até mesmo os Perpétuos aparecem menos do que deveriam, no grande escopo dos quadrinhos originais. É uma pena que a produção tenha sido engolida no meio do caos midiático de seu genitor.

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