A Substância: dentro de nós, nada além de tripas e sangue

Diga seu nome, sua idade e suas medidas

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A opressão sobre corpos femininos não é um tema novo no audiovisual. Discutir a forma como mulheres só recebem validação quando estão em um momento específico da vida e possuem um tipo específico de corpo, reféns de padrões sufocantes e inalcançáveis, já foi pano de fundo para filmes como o sublime Pequena Miss Sunshine e o incômodo Medusa. No entanto, entre as várias abordagens possíveis que o Cinema poderia conceber, ninguém fez como Coralie Fargeat. 

A Substância não é um filme sutil – muito pelo contrário, ele está no extremo oposto do espectro: é maximalista, escrachado e claríssimo em sua mensagem. A triste saga de Elisabeth Sparkle reverbera criticamente na indústria, satirizando os chefões dos estúdios, o culto ao corpo e as estrelas descartadas pela máquina misógina do entretenimento. A protagonista de Demi Moore é uma delas, que, ao chegar em seus 50 anos, é demitida do programa de exercícios aeróbicos que apresentava.

Originalmente, a Universal Pictures ia distribuir o filme, mas insistiu que Coralie Fargeat mudasse o final; a diretora se recusou e, semanas antes da exibição em Cannes, o estúdio vendeu os direitos para a MUBI (Imagem: Working Title Films)

Ganhadora do Oscar e dona de uma estrela na Calçada da Fama, Sparkle é jogada na sarjeta pelo produtor Harvey (rs), vivido por Dennis Quaid. Segundo ele, a artista está “jurássica” e a TV precisa de uma nova cara bem mais jovem e bem mais gostosa. Nesse primeiro terço do filme, que carrega o nome da personagem, Moore constroi uma Elisabeth reprimida, ainda contida em sua narrativa. O choque e a decepção da demissão se escondem atrás de um sorriso falso e de um comportamento resignado. Até receber o pen-drive que iria mudar sua vida.

A Substância: 909-555-0199. Nada mais do que um soro verde neon que, aplicado na veia, desbloqueia uma nova versão de você. Uma versão melhor, mais nova, mais bonita. Mas ainda você, a mesma pessoa. E não se esqueça: você deve trocar a cada 7 dias, sem exceção. Relutante, ela faz a encomenda e, no melhor estilo Alien, com uma cesariana cervical, nasce Sue. Margaret Qualley domina a tela, recusando toda a passividade de Elisabeth e se movimentando com muita firmeza e ambição. Ela ganha o papel resultante da demissão de sua predecessora, vira uma estrela e, pouco a pouco, se alimenta do que resta da atriz mais velha.

Para potencializar o impacto visual de Sue, Margaret Qualley usou próteses corporais para, por exemplo, aumentar o seu busto (Imagem: Working Title Films)

É a partir dessa premissa que A Substância se contorce para preencher seus espaços. O objetivo da diretora e roteirista Coralie Fargeat não é se esconder atrás de subentendidos e alegorias; sem hesitar, Fargeat é transparente com sua mensagem, explorando o body horror, subgênero do terror, para brincar com os sentidos do espectador e contar sua história da pior forma possível, cheia de intervenções sonoras gritantes e cortes alucinados. O exagerado e a obviedade não diminuem a experiência visual, mas potencializam a forma como enxergamos o mundo de Elisabeth dentro e fora de seu apartamento.

Nas ruas, tudo parece um comercial. Cores vibrantes contrastando umas com as outras – amarelo em cima do vermelho em cima do azul –, criam essa sensação de futurismo que a fotografia de Benjamin Kracun exprime. São enquadramentos inusitados e ambiciosos que distorcem a imagem de seus personagens e geram close-ups extremamente inquietantes que subvertem os limites do corpo humano. Nesse sentido, Dennis Quaid é uma das melhores vítimas do filme. Canalha ao quadrado, a cara de Harvey está sempre perto da nossa. Sentir o seu bafo e enxergar o óleo grudado em seu rosto é essencial para uma narrativa onde o físico funciona como um espelho.

Por seu papel no filme, Demi Moore venceu o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Comédia ou Musical, o prêmio do Sindicato de Atores (SAG Awards) e o Critics Choice Awards (Imagem: Working Title Films)

A comida é a aliada perfeita das intenções da diretora francesa. Ela é o marcador primário do grotesco, o primeiro momento em que A Substância evoca o nojo do espectador. Camarões sendo desmembrados bem na cara da câmera, o mastigar da coxa de frango e as vísceras de um peru à mostra são alguns dos momentos em que comer se torna um ato vulgar, gráfico. Esses sons, que seriam tratados como sons comuns e rotineiros, são intensificados até soarem como grunhidos guturais e desumanizadores. Enquanto o caso de Harvey manifesta a hipocrisia masculina, o caso de Elisabeth é o símbolo de seu descontrole e da busca por sua autonomia.

Assim, pouco a pouco, a personagem de Moore vai cedendo à loucura, presa em seu apartamento labiríntico e sequestrada pelo próprio reflexo. Do outro lado da moeda, a estética de Sue se mantém sempre limpa, iluminada, abençoada pelas lentes de Fargeat que deliberadamente hipersexualizam seus movimentos a fim de apresentá-la como o produto que se vende. Qualley alimenta a aura celestial com classe e ingenuidade, performando o papel de boa moça da porta para fora. 

Pode até não ficar claro de que maneira Elisabeth e Sue dividem a consciência, mas, no fim das contas, tudo gira ao redor do ódio pelo próprio corpo que Sparkle carrega e exprime em suas duas versões. O banheiro ladrilhado se torna um cativeiro e um campo de batalha e, à medida que Sue vai roubando a juventude de Elisabeth, o horror se assenta de forma mais latente através da mais maldita das transformações: o envelhecimento.

O designer de efeitos especiais Pierre-Olivier Persin, responsável pelo filme, afirmou a Marie Claire que A Substância tem o mesmo gosto de A Mosca, obra de David Cronenberg (Imagem: Working Title Films)

O corpo da mulher velha é comumente utilizado como símbolo da monstruosidade. A Visita, Relíquia Macabra, O Iluminado e até Noites Brutais têm no exagero da pele envelhecida a vilania de suas personagens. Em A Substância, Coralie Fargeat também se apropria desse elemento, mas para desvirtuá-lo. A velha Elisabeth é um monstro porque se vê como um antes mesmo de se transformar. Ela atinge a pior de suas metamorfoses, como uma punição.

O terceiro ato, então, surge feito um soco no estômago. E entre os olhos. E provavelmente no peito também. MONSTRO ELISASUE é a assembleia dos nossos sonhos mais loucos, a hipérbole do próprio discurso que A Substância vinha construindo até então. No melhor estilo Carrie, A Estranha, o terceiro corpo que surge entre Elisabeth e Sue é assustadoramente bizarro, explicitando ainda mais a proposta gore de Coralie Fargeat. Difícil de descrever, o clímax é um fechamento digno para toda aquela estranheza; o abandono total da prudência e do bom senso. Vão todos ao inferno! Explodam! Explodam!

A Substância levou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2024 (Imagem: Cannes Film Festival)

Para a surpresa de muitos, essa mistura de sangue, gordura e nudez recebeu cinco indicações ao Oscar 2025. Possivelmente a mais frutífera está em Demi Moore, na categoria de Melhor Atriz – nomeação justíssima pela entrega de Moore no desmantelamento de Sparkle. Em Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Cabelo e Maquiagem e Melhor Roteiro Original a obra também marcou presença, enfrentando o preconceito que a cerimônia costuma ter com filmes do gênero.

É polêmico, é divisivo e é delicioso. A Substância é o resultado de um mundo de homens poderosos e asquerosos que abusam, moldam e desfiguram o corpo feminino a seu bel-prazer. É também um manifesto antietarista pelas atrizes que chegam aos 40 anos e passam a interpretar apenas mães e avós castas e sem tesão. Pelo direito de existir, de envelhecer e de jorrar o sangue do seu braço na cara de uma plateia inteira. E de explodir e desaparecer depois. 

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