A vida de Grace Pudel (Sarah Snook) nunca foi das mais fáceis: a mãe morreu no parto, o pai caiu no alcoolismo depois de sofrer um acidente de trabalho e a fartura no lar era escassa. A única luz na rotina era a presença de Gilbert (Kodi Smit-McPhee), irmão gêmeo que a protegia na escola e adorava vê-la feliz em meio a sua coleção de caracóis e lesmas.
Traço herdado da mãe, que parecia adorar os espirais e a lentidão dos pequenos seres, o mote de Grace é estremecido quando o pai, um artista de rua francês que nunca realizou o sonho de apresentar-se para grandes audiências, morre enquanto dorme. Chega o governo australiano, de papéis em mãos, e separa a pequena de Gilbert.

A partir daí, o diretor e roteirista Adam Elliot imprime em Memórias de um Caracol, uma das cinco animações na disputa pelo Oscar 2025, uma eulogia da felicidade passageira de Grace. Por meio de longas narrações em off, em parte pelo orçamento singelo que não permitia a sincronização labial dos diálogos, o filme se constrói na incessante lembrança – o que foi, o que virá e o que poderia acontecer.
A performance vocal de Snook é adequada às modulações emocionais da protagonista, que, apesar de todo o arredor, não sente pena de si mesma nem desiste da caminhada. Entre o casamento com um fetichista que cozinha gordurosos pratos para vê-la crescer, Grace tem uma brecha emocional ao conhecer Pinky (Jacki Weaver), uma velhinha barra-pesada que confunde o cesto de lixo com o cesto da devolução na biblioteca.

Juntas, as mulheres formam uma incomum conexão: por meio de risadas trocadas e memórias compartilhadas, as tragédias nada menos do que terríveis da vida de Grace ganham traço cômico do diretor, que aqui finaliza um longo projeto que envolve stop-motion, massinha e caracóis.
Semelhante ao que o recente Marcel, the Shell with Shoes On conjurou no trato da vida cotidiana pelos olhos de um minúsculo organismo no universo, Memoir of a Snail replica temas de pertencimento e identidade, mas pega no tranco mesmo nas abordagens do preconceitos que os irmãos vivenciaram na pele.

A princípio coadjuvante, a presença de Gilbert ganha pulsão na voz quebradiça de Smit-McPhee, que precisa enfrentar uma família adotiva ultra religiosa e sofrer com a homofobia como única resposta às suas tentativas de libertar-se do local. Em uma Austrália árida, indigesta e feia de se ver, o filme rejeita o pessimismo que uma vez provou-se máxima no Cinema de Elliot.
Para a narrativa prosaica e quase epistolar de Grace, seu irmão, sua amiga e suas lesmas, há uma bem-sucedida decisão de pescar na cultura pequenas peças que respondem ao quebra-cabeças total. Do animal batizado em homenagem à autora favorita da mãe, Sylvia Plath, não são poucas as referências literárias; à Metamorfose que Kafka criou para simbolizar o crescimento e a independência, até as tramas de pobreza à riqueza que os britânicos publicaram à rodo nos séculos passados. Nada é por acaso, e tampouco deveria ser.
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