Ao mesmo tempo em que a avó passa uma camisa com o ferro quente, o pequeno Elwood observa o próprio reflexo na superfície metálica do material. É desta forma que RaMell Ross representa o mundo em Nickel Boys, filme que o prolífico documentarista verte para as telas através das palavras de um romance premiado. Com a câmera em primeira pessoa, o protagonista não só vive os acontecimentos da história, ele os transmite na crueza para quem assiste.
A trama segue Elwood (papel de Ethan Herisse), um garoto prodígio que, na oportunidade de estudar e sair da vida sem promessas que vive com a avó, interpretada por Aunjanue Ellis-Taylor, cai numa cilada sem saída. Ross, que aqui escreve o roteiro ao lado da produtora Joslyn Barnes, se aproxima dos temas de violência e sensibilidade com uma abordagem singular.

Obrigado a viver no Reformatório Nickel, criação fictícia que serve de reflexo ao verdadeiro instituto que matou incontáveis crianças e adolescentes negros no século XX, Elwood conhece Turner (Brandon Wilson). Opostos, o garoto mais velho não tem o otimismo no campo de visão e ensina a Elwood a maneira correta de se portar no local.
Reconhecido na seção Spotlight do Sindicato de Fotografia, Jomo Fray, na omissão mais dolorosa da lista do Oscar 2025, filma esse florescer brutal com planos em ponto-de-vista e imagens subjetivas. À certa altura, o foco troca de Elwood para Turner, e então Nickel Boys reinicia na perspectiva do outro. Some isso à montagem de Nicholas Monsour, que acopla sem problemas elementos históricos, com um corte anacrônico futuro, onde um homem adulto lida com as cicatrizes de sua formação.

Diferente do que se espera de uma obra centrada no racismo, RaMell Ross locomove-se da visão documental que o indicou ao Oscar em 2019 por Hale County This Morning, This Evening, mas não abre mão da sensível assinatura que o denota e distingue dos pares. Muitas vezes desafiador, o estilo de Nickel Boys é subversivo, imersivo e, mais importante ainda, inesquecível. Pelo trabalho, apareceu na categoria de estreantes do Sindicato dos Diretores.
Ellis-Taylor, filmada sempre pelos olhos do neto, fica gigante e pequenina, quaisquer que sejam as ações que lhe são estendidas. Assim como os personagens brancos da história, que vão da letargia de Fred Hechinger até o áustero timbre de Hamish Linklater. Complementar ao discurso que Colson Whitehead registrou no romance vencedor do Prêmio Pulitzer, a experiência cinematográfica é daquelas que demandam mente aberta – estômago forte.

Por mais que, nos momentos mais cruciais e fomentadores das ações de Elwood e Turner, a direção recuse a violência explícita e se encarregue de dividir o trauma e o peso das ações. Sem sofrimento negro que aditiva um Cinema perverso e atento às lágrimas e ao sangue, Nickel Boys marca um passo na autoralidade de seu realizador – e prova que o Oscar ainda teme premiar e reconhecer aqueles ousados o bastante para desmanchar o estado vigente.
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