Six Feet Under: a 1ª temporada já começou operando milagres

Etérea e mundana, conheça a série da HBO que mudou o escopo da Televisão na virada do século

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No verão norte-americano de 2001, o cineasta Alan Ball tinha um Oscar na estante e a vontade de remexer as estribeiras do cenário televisivo. Chegou Six Feet Under, no Brasil chamada de À Sete Palmos, produção original da HBO que trouxe novos significados para a morte – e ainda apresentou os espectadores com um show de performances e histórias transgressoras.

A temporada inicial começa de forma simples: Nathaniel Sr. (Richard Jenkins) morre de maneira trágica. Sua família, dona de uma casa funerária em Los Angeles, precisa enfrentar o luto e, no caminho, não deixar que o negócio caia em ruínas. A mãe é Ruth Fisher (Frances Conroy), uma mulher controladora, pragmática e cabeça-dura; por ela, os filhos vivem entre suspiros de cansaço e silêncio constrangedor.

Alan Ball escreveu Beleza Americana antes de Six Feet Under; pela série, venceu o Emmy de Direção em Drama com o piloto (Foto: HBO)

O mais velho, na verdade, debandou-se: Nate (Peter Krause) recebe a notícia da morte do pai e pega o primeiro voo de volta para casa. No avião, conhece quem será sua futura namorada – e objeto de amor desmedido e dor inimaginável, Brenda Chenowith (Rachel Griffiths). É tudo muito clássico, com o primogênito, há muito afastado do lar, precisando se adequar aos preceitos antigos.

O verdadeiro herdeiro do pai é David (Michael C. Hall), certinho e católico, secretamente gay e infeliz com as escolhas que o trouxeram até ali. Nem o relacionamento às escuras com o policial Keith (Mathew St. Patrick) alivia a tensão do homem, que dita as regras na casa funerária e precisa controlar até a maneira que os tapetes são estendidos. 

A série competiu no Emmy 2002 pelas duas primeiras temporadas, acumulando 10 indicações e 2 vitórias nas categorias principais: Direção e Atriz Convidada para Patricia Clarkson – na noite técnica, disputou onze e ganhou quatro, em Direção de Elenco, Tema de Abertura, Design de Abertura e Maquiagem Prostética (Foto: HBO)

Sobra ainda a caçula, Claire (Lauren Ambrose), estudante do Ensino Médio que coleciona mágoas e sente uma exclusão que se mostra explícita especialmente na diferença de idade para os irmãos. Cada Fisher lida com a perda de maneira distinta – e Six Feet Under faz questão de colocar no roteiro de cada um a jornada necessária para o amadurecimento, seja ele tardio ou precoce.

O pai, morto e enterrado, está tão presente ali quanto os familiares de carne e osso; a mãe, a quem Frances Conroy despeja humanidade e egoísmo ao passo que descostura suas próprias crenças, é uma personagem formidável. Nas relações interpessoais com os filhos, revela também uma vida inteira de insegurança e dúvida. Não surpreende que David só saia do armário para ela no crepúsculo da temporada, quando sua identidade como homem gay passa por provações diversas.

Entre a equipe de direção, a atriz Kathy Bates arrasou atrás das câmeras, comandando dois dos treze episódios iniciais – a crítica e os sindicatos caíram de amores, rendendo dois Globos de Ouro e um prêmio no Sindicato dos Diretores (Foto: HBO)

Além de ser metade do casal interracial entre um agente funerário católico e um polical negro, David lida com estigmas da época e liberta-se da própria culpa e arrependimento. Hall, anos antes de encarnar o sensual assassino Dexter, brinca com as nuances e tira proveito de seu arquétipo, o control freak viciado em discrição – e aquele que drasticamente precisa rasgar a própria pele para chegar ao novo estado de liberdade.

Capturando um flash muito específico da vida adulta, quando conhecemos nossos familiares não como os títulos dados no nascimento e sim como pessoas com desejos e vontades e frustrações, a criação de Alan Ball é o clássico pedaço de TV de prestígio, enriquecendo o mote dramático com o “caso da semana”.

Isto é, o rápido vislumbre da morte de cada cliente da Fisher & Sons Funeral Home, que dá as caras, precedido pelo nome do falecido e o tempo que passou na Terra. De uma estrela de filmes pornográficos que faz Ruth repensar seus preconceitos, até um bebê de 3 semanas que acende em Frederico (Freddy Rodriguez) um medo sobrenatural, e chegando ao brutal crime de homofobia que coloca David em parafuso com a própria vida, Six Feet Under não poupa ninguém.

Six Feet Under chegou junto da estreia de Família Soprano, e alguns anos depois de Oz, séries que eletrizaram o conceito da TV e apresentaram novos objetivos e abordagens (Foto: HBO)

Interessante no prisma do desenvolvimento pessoal, que reflete nesses agentes da morte uma vida inteira de decepções e sonhos, aparecidos justamente nas interações que acontecem antes do caixão descer ao buraco no chão. Os acontecimentos são espelho dos Fisher, mas também servem de trampolim para os arcos individuais.

No relacionamento de Nate, Brenda lida com um irmão bipolar e alvo das sequências mais sensíveis no que diz respeito aos direitos das pessoas que não tem ciência sobre as próprias ações. Ainda, Ruth atravessa casos extraconjugais, apenas para canalizar a liberdade que nasceu da perda do marido.

As primeiras temporadas, que concorreram juntas ao Emmy 2002, indicaram 9 atores: Conroy, Griffiths, C. Hall, Krause, Rodríguez, Ambrose e as convidadas Illeana Douglas, Patricia Clarkson e Lili Taylor (Foto: HBO)

Claire, em harmonia, batalha contra o ambiente hostil do high school, levando na bagagem uma criação ortodoxa, o acesso aos restos mortais de qualquer um, e até um possível namorado com fetiches incomuns. Ambrose, que anos depois encarnaria uma das sobreviventes em Yellowjackets, transmite uma sabedoria estrangeira à sua aparência, mas que depois se revela mais do que justificada. 

Os irmãos voltam à velha infância e enfim enxergam a leveza e o companheiros que lhes foi negado nos anos de formação. Nate e David tocam o negócio da família, e Claire vive as tramoias juvenis, com o amparo dos mais velhos e a certeza de que, pela primeira vez desde sempre, ela será protegida. À Sete Palmos ou antes de serem levados à terra, os corpos que respiram tem a chance de mudar o presente, de forma categórica, eufórica e até espirituosa.

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