Com o ultimato de Ava (Hannah Einbinder) no fatídico e premiado Bulletproof, a série de comédia que acompanha os trâmites de uma estrela septuagenária e sua jovem aprendiz não teve para onde correr: agora é guerra! E Hacks não deixa a peteca cair, já que a roteirista e sua chefe narcisista começam Big, Brave Girl afiando lâminas e polindo escopetas.
O cenário muda da desértica Las Vegas, onde Deborah Vance (Jean Smart) pavimentou a carreira como comediante, para a ensolarada Los Angeles, local que o presente se encontra ao passado e propicia a mulher o posto de apresentadora do Late Night, o clássico formato norte-americano noturno que mistura notícia, bom humor e entrevistas.

Ver Deborah e Ava (Hannah Einbinder) dilacerando o ego e a pele uma da outra é um dos pequenos prazeres do trisal, ops, trio de criadores da série, que aqui se debruçam nos limites de uma relação que começou passiva, tornou-se amigável e agora ultrapassou a fronteira da inimizade. Tamanha tensão que o estúdio delega Stacey (Michaela Watkins) o papel de mediadora entre as parceiras de show.
Mas tal rixa não pode, e nem deveria, durar tanto, com a trégua sendo selada em prol do programa televisivo, e depois enterrada quando Deborah enxerga uma miragem de Ava à beira do precipício. Dessas trocas ácidas, Smart e Einbinder incentivam a selvageria que o roteiro desenha, indo aos extremos do ético e do infantil para que suas posições sejam devidamente escutadas.

Sobra espaço, óbvio, para que Hacks sirva de outdoor para a cidade que serve de locação, com um dos créditos de encerramento mostrando a casa cenográfica de Deborah, destruída nos devastadores incêndios do começo de 2025. A indústria do entretenimento sangrou pela tragédia ambiental, e não há maneira de seguir em frente sem encarar o sofrimento.
E com o letreiro de Hollywood à plena vista, a comédia recebe estrelas à torto e a direito. Seja em versões falsas deles mesmos, como Kristen Bell, Jimmy Fallon, Seth Rogen e Carol Burnett, seja em participações hilárias, apoiadas na balbúrdia e no exagero, caso de Julianne Nicholson como a sensação viral Dance Mom, a 4ª temporada de Hacks esbanja o carisma que sempre lhe foi de nascença.

Poucas estrelas brilham tanto quanto Jean Smart, e ela faz questão de dilatar as emoções de Deborah em todas as dimensões possíveis. O ensaio de estreia transforma-se numa crise de pânico, seguido por um desmaio causado pelo uso de Poppers, demonstrando o alcance da atriz, que nunca pestaneja ou titubeia na mais esdrúxula das situações. Quando precisa fazer silêncio, porém, ela convence e emociona.
As pazes com Ava, carregadas de culpa e um sentimento de arrependimento até então estrangeiro ao repertório de Vance, é tão ou mais potente que a tristeza que experiencia no batizado do neto. Sabendo que a relação com a filha DJ (Kaitlin Olson) nunca foi, nem será, de proximidade e camaradagem, ela lamenta prematuramente a função que exercerá no pequeno AJ.

Ava está ali para confortar a amiga/rival/eterna companheira. Não sem antes encarar os próprios fantasmas, na forma de um apartamento decadente dentro do shopping, na relação apodrecida que alimenta com um casal que conhece na sex shop e, mais tarde, nas expectativas que a própria mãe, Nina (Jane Adams), deposita em seu futuro. Se Ava decidir ter filhos, construir uma família ou seguir focada na carreira, Einbinder faz cada decisão contar.
A evolução da atriz no papel, que antes era moldado pela quebra dos estereótipos contrastantes dos baby boomers e dos millennials, é palpável e atesta o caráter sempre metamórfico de Hacks, uma série que cresce ao passar dos anos e, na melhor das definições, guarda as surpresas rentes ao peito. Quer o Late Night decole, quer o matrimônio entre Deborah e a TV despenque, é certo que sua rede de apoio, pautada na visão passional de uma mulher em posição de poder que tanto intimida quanto impressiona sua aprendiz, estará lá, em posição de guarda.

Por isso, o estupendo A Slippery Slope pega todos de surpresa na veia selvagem de seu discurso. Sob a direção de Lucia Aniello, e o roteiro do trio-paterno, Deborah recebe outro ultimato, com fins categóricos para a relação com Ava. É pelo vazamento de um caso de censura, autorizado pelo chefe da rede Bob Lipka (em performance fascinante de Tony Goldwyn), e assinada por todos os escritórios entre o comando central e a sala da apresentadora.
No ar com o programa líder de audiência e na crista da onda de uma carreira longeva e surpreendente, Smart mira as câmeras com a honestidade e a crueza que a amizade com Ava ensinou-a desde que a jovem bateu na porta de sua mansão em Nevada. Se o passado era frequente pela certeza de que a veterana jamais jogaria o próprio corpo aos leões pela novata, Hacks vai contra, e termina com o Late Night.

Impedida de trabalhar por 18 meses, Deborah entra em parafuso. Encara o passado mercadológico com Marcus (Carl Clemons-Hopkins), estuda os contratos da TV e então embarca para fora do país com Ava. Em Singapura, onde passam quase um ano embaralhando entre piadas recicladas e álcool à ror, a situação piora sem dar sinal de melhorar no futuro próximo.
Mais epílogo do que clímax, Heaven sela a 4ª temporada de Hacks pautando-se na maturidade de sua gênese. Em declaração, Aniello, Paul W. Downs e Jen Statsky confirmaram a ideia de finalizar este momento da vida delas não numa descida ao precipício social, e sim com a obstinação que fará a dupla voltar atirando para cima. Afinal, nunca que um obituário vai definir Deborah pela palavra com A e sair impune. Preparem-se.
Deixe um comentário