Um casamento de anos que acabou em ruínas e deu vazão a Lily Allen no campo criativo: West End Girl foi feito em dez dias e coloca a cantora na cruz, de maneira cronológica, ao contar cada acontecimento que levou ao divórcio com David Harbour. Perigando adentrar o território de confissões pessoais-até-demais, o disco é exemplo do caráter ácido de Allen.
A faixa-título descreve as ações de maneira teatral – duh -, e detalha pequenas rachaduras na aparente crisálida do amor: ela é oferecida um papel na West End e a primeira coisa que o marido fala é em tom de deboche. O relato é cru: “E naquela noite, mais tarde, você perguntou como foi meu dia/Eu disse: Tenho boas notícias, consegui o papel principal numa peça/Foi aí que seu comportamento começou a mudar/Você disse que eu teria que fazer um teste, eu disse: Você está louco”.

Quebrando a expectativa de quem espera uma conclusão cantada, Allen corta a música pela metade e anexa o lado de cá de uma chamada de vídeo com o marido, onde só ouvimos as falas dela. A voz, quebradiça, ameaça romper-se em lágrimas com a ideia de uma relação aberta e a distância. Vem, então, o primeiro dos monólogos crepusculares do disco. Em Ruminating, a cantora fantasia as piores possibilidades.
A “outra” hipotética ataca seu ego de forma avassaladora, assim como a atitude do esposo, que decide de forma unilateral o novo rumo da união: a pedrada está na repetição da frase dita por ele, “se tiver que acontecer, você quer saber?”. Allen martela as palavras na cabeça e, a cada novo ciclo, tatua o rompimento emocional na camada mais profunda de seu corpo. A música tem muito do tom confessional característico de sua discografia, mas incorpora batidas de frenesi muito de acordo com o ciúmes e a raiva.

O segundo monólogo deixa de lado a euforia e a adrenalina do momento e deixa que Sleepwalking atue como conduite do choque para a aceitação. Numa canção de ninar infernal para a vida de qualquer pessoa traída, Allen vai dissecando o comportamento do homem, de maneira controlada e deliberada. Assim, os golpes são sentidos a fundo. “E não sei se você faz isso intencionalmente/De alguma forma, você faz ser minha culpa/Você não para de falar/E eu estou no piloto automático”. Mais adiante, o passado vem à tona, “Mas você me deixou pensar que era coisa da minha cabeça/E que não tinha nada a ver com aquelas garotas na sua cama”.
A catarse de Tennis pode ser sentida pela voz de Lily Allen, que detalha a volta do marido para casa e a descoberta de uma traição inimaginável. Nas mensagens de texto, a esposa descobre a figura de Madeline, uma constante do CD daqui em diante, e questiona ele. Novamente usando das repetições como instrumento narrativo, a compositora muda a inflexão da fala, “quem é Madeline?”, de novo e de novo, nos estágios da consternação, do desleixo, do ódio e do saco cheio.
“Nós tínhamos um acordo/Ser discreto e não ser flagrado/Tinha que haver pagamento/Tinha que ser com estranhas/Mas você não é uma estranha, Madeline”

Não demora para que Madeline (a Jolene de Allen) nos seja apresentada: primeiro pela voz de Lily, e depois em depoimento próprio. Com apenas algumas escolhas de pronúncia e entrega do texto, a presença da outra mulher é tão forte como se Allen colocasse alguém para dublá-la. E depois que a Pitchfork comparou Madeline à personagem Marnie de Girls, ficou impossível desconectar as duas. Mas a faixa-título da amante não é feita só de confissões, com Allen incorporando elementos do faroeste, atirando a esmo com um revólver recheado de balas.
A gota d’água coloca a cantora no espiral de Relapse. O passado de muita honestidade quanto à dependência de substâncias devolve Allen ao fundo do poço, numa canção que ecoa batidas repetitivas para demonstrar o tamanho do buraco aberto em sua rotina e estabilidade. “Cruzei um oceano, distante da minha família, dos meus amigos”, ela confessa, entre tragadas violentas do próprio orgulho.

A introspecção abre alas para a pièce de résistance de West End Girl, uma faixa tão crua quanto o sangue que o marido tirou dela com as mentiras e traições. Em Pussy Palace, Allen investiga o apartamento dele e descobre o pior dos dois mundos, começando ao alegar que “não sabia que era seu palácio da putaria”.
É chegado o ponto onde o retorno não é opcional, e a literalidade cresce na composição: “Sacolas de farmácia com as alças amarradas/Brinquedos sexuais, plugs anais, lubrificante dentro/Centenas de camisinhas, você é tão degenerado/Como acabei me envolvendo na sua vida dupla?”. West End Girl, portanto, abandona a frustração e o pesar para enveredar-se em vias do escrutínio.

4chan Stan acaba com o caráter do homem, e Nonmonogamummy tira sarro das imposições e normas propostas a ela. Ao lado de Specialist Moss, Allen evoca o reggae e não esconde o extravaso, em pontiagudas frases direcionadas ao ego do ex-companheiro. Há fineza na construção de uma mulher agora não mais apenas machucada, mas também armada das mesmas ferramentas que poderiam, outrora, enviá-la à fossa.
Just Enough apazigua os ânimos, com a cantora sussurrando o plano de cura, embora também interrogando a si mesma sobre os rumos da vida – com o orgulho dilacerado frente a possibilidade dele ter engravidado outra mulher – e, para piorar, ter acompanhado-a no médico e segurado sua mão. Com a boca manchada pelo ciúmes da situação, Allen assume o pseudônimo de Dallas Major e parte para a caça nos aplicativos de relacionamento.

O exercício não rende frutos, servindo ao propósito de libertá-la do navio afundando. Beg For Me apodera-se das pistas (“Eu me sinto constrangida, eu me sinto envergonhada”, ela relata, entre o que parece ser o suor de uma noite de festas); ao passo que Let You W/In, em outros dos perspicazes trocadilhos gramaticais de Allen, reconstrói as defesas demolidas – e celebra seu timbre numa canção de alcance profundo e sensação de ordenação e limpeza.
West End Girl acaba numa nota autorreferencial para a britânica, que declara que o problema não é ela, e sim ele na fantástica Fruitloop. Ligando os temas de imaturidade e criancice às necessidades emocionais de figuras paternas e maternas, a Allen que despede-se do marido não é a mesma que mudou-se para Londres e julgou estar imersa na felicidade e no companheirismo. Mais madura e áspera, o papel teatral abriu seus olhos para certas fomes inerentes das pessoas. Entre elas, a mordaz sede por controle, algo que ela recupera ao longo das faixas que expurgam um mal capaz de envenenar.


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