Quando a notícia de que a argila especial que o estúdio Aardman usa para suas animações de stop motion estava acabando devido ao fechamento de seus fabricantes, foi possível ver uma onda de simpatia nas redes sociais que de outro modo só é vista com o falecimento de um grande nome do Cinema. Mesmo após eles mesmos terem desmentido as alegações, assegurando à todos que estava explorando novas possibilidades e que ainda haveria argila o suficiente para muitos projetos, o carinho que sentimos pelas obras do estúdio britânico, conhecido por franquias como Wallace & Gromit, Shaun, o Carneiro e Fuga das Galinhas, ficou deliciosamente palpável por dias.
De certo modo, Wallace & Gromit: Avengança parece ter nascido desse carinho, refletindo o apreço de seus criadores por todas as coisas que fazem seus filmes únicos e transformando-o em uma celebração de sua história. Indicado ao prêmio de Melhor Animação no Oscar 2025, Avengança trás de volta um dos vilões mais icônicos da história do cinema, introduzido mais de 30 anos atrás em Wallace & Gromit: As Calças Erradas, segundo curta-metragem da série. O sinistro Feathers McGraw ficou pacientemente tramando sua revanche durante todo esse tempo, esperando pela oportunidade perfeita de se vingar do inventor e seu cachorro.

Se o cinema não passa de um truque de mágica, um jogo de luzes e espelhos feitos para criar uma ilusão que imita e muitas vezes suplanta a realidade, a animação em stop motion não é nada menos do que pura feitiçaria. E certamente há pouquíssimos feiticeiros mais talentosos do que os animadores do estúdio Aardman, responsáveis por dar vida a dois dos maiores ícones da Grã-Bretanha. Exportando o humor britânico para o resto do mundo, o par volta com força total quase 20 anos depois de A Batalha dos Vegetais (2005), combinando as excentricidades mecânicas de Wallace (Ben Whitehead) com a sensatez silenciosa de Gromit.
Na nova trama, Wallace está obcecado em automatizar todos os processos de sua rotina e, na tentativa de ajudar Gromit, acaba criando Norbot, um gnomo mecânico para cuidar do jardim que seu companheiro ama tanto. No entanto, a fama que essa invenção traz acaba chamando a atenção de Feathers McGraw, antigo nêmesis da dupla, preso até hoje no zoológico após ter sido pego tentando roubar um diamante famoso. Ele põe em prática um plano nefasto não apenas para se libertar, mas para finalmente realizar o roubo perfeito e colocar toda a culpa em seus algozes.

Apesar de ser voltado para o público infantil, não há como negar que Avengança se posiciona como uma crítica muito pouco sutil ao uso de inteligências artificiais em áreas criativas: apesar de ser eficiente em jardinagem, os jardins que Norbot cria são padronizados e sem personalidade, sem o amor amor ou afeto que Gromit dedicava à ele. Após se popularizar pelo bairro, muitos dos vizinhos de Wallace imploram para utilizar os seus serviços,fazendo com que ele inicie uma empresa de jardinagem composta exclusivamente pelos robôs, apesar da insatisfação de seu companheiro canino. A dinâmica entre os dois permanece tão clássica como sempre, com Wallace sendo um inventor meio pateta e Gromit sendo um sábio que tem que consertar suas burradas, para sempre condenado por sua incapacidade de falar.
E é aí que Feathers McGraw entra em cena. Com o mesmo olhar inexpressivo de antes, o pinguim é a cara da frieza absoluta, uma mente maléfica que parece antecipar cada movimento dos heróis antes que eles o façam. Assim como Gromit, ele se expressa sem a ajuda de nenhum diálogo, apenas fazendo uso de suas próprias invenções maléficas e seu intelecto superior. Seus olhos, dois pontos pretos acima de um bico laranja, estão entre as visões mais sinistras do Cinema. E algumas vezes ele se disfarça de galinha colocando uma luva vermelha em cima da cabeça e é a coisa mais engraçada que você já viu na sua vida.
Na cola da série de perturbações que ocorrem na vizinhança após os robôs de Wallace entrarem em serviço está a policial Mukherjee (Lauren Patel), que tenta convencer o inspetor Mackintosh (Peter Kay) de seus palpites improváveis. É um jogo de gato e rato em que nenhuma das partes sabe que está jogando e que complementa o lado cômico da animação.

A angústia de ver Wallace ignorar todos os olhares preocupados de Gromit é bastante familiar para aqueles que passaram os últimos dois anos vendo a proliferação de imagens criadas por inteligências artificiais lentamente consumindo as redes sociais e se popularizando apesar de seus defeitos. Chega quase a ser catártico ver um estúdio de animação, responsável por produzir imagens completamente novas a partir de seus artistas talentosos, fazer uma crítica tão direta e incisiva não apenas à IA como ideia, mas a sua aplicação na hora de suplantar aquilo que nos dá prazer de viver. Todos entendemos como Gromit se sente ao ver seu jardim, que ele passou anos mantendo e dando tudo de si para ver florescer, ser substituído de repente por algo que não sente prazer algum no ato de jardinar. Minha pergunta é: se até uma animação infantil pode refletir esse sentimento, por que vemos cada vez mais o uso de IAs generativas tentando ser normalizado por grandes produções? Eles não conseguem ver que não são nem os vilões da história, mas os otários que caem no plano dos vilões?
Depois desse parágrafo altamente pessoal eu me sinto na obrigação de te contar que Diane Morgan, comediante conhecida por interpretar a jornalista Philomena Cunk em segmentos da BBC que você definitivamente deveria ver, também aparece aqui interpretando uma repórter chamada Onya Doorstep (“on your doorstep”, literalmente “na soleira da sua porta”). Obrigado pelo seu tempo.

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