Se você tropeçar na História do Cinema, talvez encontre Vermiglio, da diretora Maura Delpero, perdido entre aquelas obras boas, mas não necessariamente memoráveis. Não entenda mal: com suas duas horas de duração, o filme flui, cena a cena, elevando a banalidade do cotidiano a algo belo, com segredos ocultos que são apenas sugeridos a nós. Ainda assim, não te tira do chão – e talvez nem pretenda.
Vermiglio é o representante da Itália na corrida ao Oscar 2025 e chega ao Brasil na seção Perspectiva Internacional da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, após ter vencido o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza deste ano. Sua trama se desenrola nos Alpes de Vermiglio, na Itália, em 1944, um lugar tão remoto que parece um cenário teatral construído para preservar segredos enquanto a Segunda Guerra Mundial se desdobra à distância.
No meio dessa paisagem de neve, conhecemos Cesare (Tommaso Ragno), o patriarca de uma grande família que foge das definições fáceis. Ele é o professor severo e disciplinado da comunidade – o maestro –, mas detém uma melancolia latente que se revela em suas pequenas obsessões, como o apego aos discos de gramofone e sua coleção oculta de fotografias sexuais. A chegada de Pietro (Giuseppe De Domenico), um soldado siciliano desertor, é o ponto de virada que reconfigura a família.
A montagem de Luca Mattei – que trabalhou com Delpero em Maternal (2019) – é, sem dúvida, o grande mérito do filme, e também o fio que costura essa tapeçaria de emoções, alterando entre contemplação e intensidade. A transição simples, porém poderosa, entre a mãe Adele (Roberta Rovelli) envolvendo supersticiosamente seu filho doente em folhas de repolho e uma cena da neve caindo, por exemplo, entrega uma tragédia iminente sem a necessidade de palavras. O mesmo ocorre quando Ada (Rachele Potrich), a filha subjugada, observa escondida, com misto de inveja, raiva e desejo, a irmã mais velha Lucia (Martina Scrinzi) aos beijos com Pietro.
O clímax é construído de maneira meticulosa, mas o impacto final é mais sutil do que explosivo. A relação de Pietro com Lucia é o tipo de romance que acontece mais nos olhares furtivos do que nas palavras ditas – se considerar que essa história de amor é tímida desde o início, seu desfecho se torna quase previsível. O que dá mais peso a Vermiglio, no entanto, é a maneira como Delpero explora o tema do tempo. Ela se desvia do progresso narrativo convencional, focando em como o tempo, e a passagem dele, distorce a vida das pessoas. É como se cada frame estivesse impregnado de uma melancolia tranquila, uma consciência de que a felicidade, se existir, é sempre temporária e condenada a ser substituída por outra coisa.
Para os personagens de Vermiglio, enfrentar as consequências de suas próprias escolhas se revela um grande desafio. A tia Cesira (Orietta Notari) é a primeira e mais enfática a incentivar o relacionamento entre Lucia e Pietro, chegando a afirmar, em determinado momento, que “foi Deus quem o enviou” para se casar com ela. Após o desfecho, é também a primeira a criticar, dizendo que Lucia foi “precipitada demais” em levar adiante a união.
A banalidade do cotidiano, aos poucos, se revela um emaranhado de atos ritualizados, sustentada pela rigidez de uma tradição familiar. Há uma meditação sobre vidas que poderiam ter sido e não foram, sobre as coisas que dizemos e fazemos para nos convencer de que estamos vivendo algo que vale a pena, mesmo quando sabemos, no fundo, que talvez estejamos apenas nos agarrando às margens de algo maior do que podemos compreender.
No fim, o que a direção de Delpero entrega é algo mais devastador em sua simplicidade – a constatação de que, em Vermiglio, o maior desafio não é sobreviver à guerra ou às suas perdas, mas encontrar uma maneira de viver com o peso insuportável das suas escolhas e do futuro construído a partir delas.
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