Uma delicada coleção de ausências afina a essência de Aline Bei em inusitada narrativa familiar

Romance inédito da escritora marca nova fase de sua Literatura pessoal e minimalista

min de leitura

Margarida cuida de Laura como uma filha, apesar da geração que ocupa uma lacuna entre o nascimento de uma e de outra. Glória, a mãe da segunda e filha da primeira, se mandou, e nunca mais deu qualquer sinal de fumaça. Por isso, a rotina de avó e neta é uma de cumplicidade, amizade e companheirismo, sem rusgas. 

Uma delicada coleção de ausências é o romance de Aline Bei que sedimenta sua publicação pela Companhia das Letras e chega ao mercado acompanhado do livro vencedor do Prêmio SP de Literatura. Mas a fórmula da autora, agora escrevendo em terceira pessoa, não poderia ter evoluído mais.

Embora fisgue mais do que consiga apreciar, o livro mostra a evolução da autora, que troca algumas subjetividades pela pungência do amadurecimento (Foto: Companhia das Letras)

Permanece em foco a poesia do mundano que Bei captura tão bem, e eternizou em O peso do pássaro morto e Pequena coreografia do adeus, mas aqui ela evolui uma visão otimista escondida entre os cacos do destino. Em trechos iniciais, as mulheres da história perpassam lembranças antes de enfrentarem os momentos de amadurecer e encarar o que está no horizonte: “é preciso primeiro Esquecer, para então verdadeiramente lembrar”, elas definem.

Acontece que, primeiro no passado de Margarida, uma jovem que fugiu com o circo, engravidou de um palhaço e voltou para casa sem a esperança que a tirou do seio da mãe, os acontecimentos de Ausências seguem numa sucessão inevitável de corações partidos e perdas graduais da inocência que encobre os olhos da neta Laura. É tudo cíclico. 

“na mesma noite, Laura decidiu ficar apenas com o rosto de Margarida, fazer o que se sua mãe tinha envelhecido mais rápido, se o relógio da sua casa corria mais depressa? tinha mãe, sempre teve, e sua mãe se chamava vó”.

Na escola, o período entre a criancice e a adolescência tira nacos da carne e do sangue dela, nas amizades ora amistosas ora espinhosas com as colegas de classe. Pior ainda é quando, do nada, uma mulher estranha vem morar em sua casa. Trata-se, de modo nada clichê, da bisavó de Laura e mãe de Margarida.

Negando as batidas de dramas maternais focados nas gerações de proximidade temporal, Bei coloca bisa e neta para dormir na mesma cama e, sem espaço para afastamentos, enxergarem Margarida sob ótica ocasionalmente humanizadora. A velhice está presente, também, na relação esburacada das idosas, há muito em silêncio afiado uma com a outra.

“tirando a avó, a família de Laura na árvore genealógica que um dia a professora desenhou na lousa era feita só de fantasmas: fantasma mãe, fantasma pai, fantasma palhaço-vô, mas pelo menos agora Laura tinha uma bisa”.

Aline Bei pincela pequenos conflitos, em sua maioria internos, para o trio de parentes, numa dança melódica de arrependimento e desejo, características quistas pela autora. Uma delicada coleção de ausências, a definição dada para as palmas que Margarida lê como ganha-pão, define precisamente os vácuos de afeto que surgiram entre elas, mas nem o tempo é capaz de preenchê-los, não importam as boas intenções. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *