É o dia do aniversário de morte do célebre Dr. Abramson, medalhão do Pittsburgh Trauma Medical Center e mentor de seu principal funcionário, Dr. Robby (Noah Wyle), que decide trabalhar na data, algo impensável desde o caótico e trágico óbito, mostrado por calculados flashes de memória desorientada, com trajes de proteção contra o coronavírus e muitos respiradores em capacidade máxima.
Mas a maioria desses acontecimentos só serão explorados depois do almoço e do café da tarde, já que a primeira temporada de The Pitt acontece toda esticada por um único plantão. Cada um dos quinze episódios representa sessenta minutos do turno, que convida, ao lado da audiência, um grupo de novatos.

The Pitt é criada por R. Scott Gemmill, e produzida com o cuidado de Wyle, John Wells e Joe Sachs, todos veteranos da Televisão e filhos de E.R., a grande série médica americana que entrou em conflito pela existência do novo drama. Morto em 2009, ano de exibição da temporada 15 de Plantão Médico na NBC, Michael Crichton passou os espólios para a esposa, que comanda os direitos de criação de derivados e reboots do show.
E assim começou a ideia de The Pitt, um novo cosmos no hospital de Chicago que recebeu os talentos de George Clooney, Anthony Edwards e companhia. Wyle, eternizado como o novato John Carter, que cresce à posição de mestre, demorou a aceitar uma oferta do tipo. Não queria, como todo ator de TV, ficar estereotipado como um único personagem.
Filho de uma médica, Noah aceitou entrar de cabeça em The Pitt quando ouviu a comunidade de saúde, que declarou a exaustão física e mental, os quadros de depressão e ansiedade e todas as mazelas que a pandemia trouxe à tona. Assim, sem um acordo fechado no reboot de E.R., o trio seguiu a própria trilha. Mas não sem antes enfrentar um processo caloroso – e ainda à espreita -, por parte da viúva de Crichton.

Apesar de cobrir os dramas de uma equipe de médicos, enfermeiros e estudantes, The Pitt não tem mais nada a ver com E.R. Wyle, que vive um chefe astuto, cauteloso e zeloso, não se espelha no Mark Greene de Edwards ou no Doug Ross de Clooney, na construção de uma figura tão disparate quanto reconhecível.
No roteiro, as histórias são distribuídas em salas e pequenos grupos, criando dinâmicas, intrigas e ressaltando os laços, sem a necessidade de verborrágicas explicações ou mastigação para quem assiste. A enfermeira-chefe é Dana (Katherine LaNasa), uma mulher de experiência e pulso firme, que coloca todos na linha, sejam os funcionários distraídos ou os pacientes nervosos.

Na cadeia alimentar, os atendentes respondem a Robby, e o fazem com a delicadeza e a eficácia que o frenético ritmo das Emergências demanda. Dra. Heather Collins (Tracy Ifeachor) passa por uma jornada absurda de perda e dor, sofrendo um aborto instantaneo – às escuras, e continuando o trabalho num dos plantões mais dificeís de sua vida profissional.
O Dr. Frank Langdon (Patrick Ball) é convencido e dá conta do recado, pulando de caso em caso para demonstrar o vício em adrenalina que faz seu sangue bombear. Com Robby, Langdon desempenha a função de aprendiz na rota de mestre, sendo até recomendado pelo superior para uma posição de prestígio e salários maiores – e Frank precisa, com a esposa, os filhos pequenos e o recém-adotado cachorrinho.

Mais experiente que os alunos, mas não tanto quanto os Atendentes, a Dra. Mel King (Taylor Dearden) serviu numa base militar e lidou com todo tipo de machucado, sutura e bolsas de sangue. Alegre e disposta a sujar as mãos, desde que seu tempo de recuperação e respiro seja respeitado, a personagem é neurotípica e representa uma faceta refrescante e nada fetichista ou capacitista dessa minoria – sai pra lá, O Bom Doutor.
A Dra. Samira Mohan (Supriya Ganesh) é um R3 com mania de demorar a atender os pacientes, sendo constantemente cobrada a acelerar a coisa e dar conta das demandas do departamento. A outra residente é a Dra. Cassie McKay (Fiona Dourif), que comanda a triagem e passa a atitude de barra-pesada que corrobora uma misteriosa e intrigante tornozeleira eletrônica que teima a apitar nos piores momentos.

A carne nova está dispensada entre os estudantes de períodos distintos. A desbocada Dra. Trinity Santos (Isa Briones) cutuca os fantasmas de todos a seu redor, especialmente dos tão-frescos-que-mal-caíram-da-árvore Victoria Javadi (Shabana Azeez), filha de uma cirurgiã manda-chuva e a primeira a desmaiar no plantão, e Denis Whitaker (Gerran Howell), menino do campo que esbanja timidez e certa aptidão para se sujar com os mais diversos líquidos.
E o que são os hospitais sem os enfermeiros? Além de Dana, o time é composto pela fantástica presença de Princess (Kristin Villanueva) e Perlah (Amielynn Abellera), que comentam todos os fuxicos em um tagalog que as equipara ao coro grego das peças de teatro. Donnie (Brandon Mendez Homer), Matteo (Jalen Thomas Brooks) e Jesse (Ned Brower) também se misturam às lágrimas e aos momentos tão estranhos que acontecem no plantão.

O que encanta e fisga na premissa de The Pitt é o elemento temporal, colocando todos na mesma embarcação: não é possível esperar o pior passar, já que os pacientes chegam aos montes, sem pausa para um lanchinho ou uma passada pelo banheiro. A direção de Wells equilibra a alma de E.R. com o esqueleto de 24 Horas, criando arcos que perduram algumas horas, e outros que, de tão carregados, só se resolverão quando o Sol se pôr.
Por isso, The Pitt mudou o que se entende como uma série de streaming. O cenário foi criado antes da escrita do roteiro, para que as cenas tivessem sinergia e o espaço físico fizesse sentido lógico e geográfico. A direção de elenco escalou extras que assinaram longos contratos de emprego, considerando o caráter do show e sua passagem dilatada de tempo.

Alguém que chega ao hospital na hora do almoço, mas só é atendido depois do café da tarde está presente em todas as cenas, mesmo que em segundo ou terceiro plano. Outra regra imposta foi no guarda-roupa: a equipe técnica vestia jalecos e aparatos médicos para o caso de, se forem pegos pelas câmeras múltiplas, tudo passasse despercebido.
Há um quê teatral no ensaio e na demarcação das cenas, com muito treino e preparação, além da ciência da força do trabalho em equipe. Apesar do trabalho volumoso de Wyle nas entrevistas e eventos, The Pitt é um drama de elenco, que só funciona à perfeição pela força conjunta.

Tamanha tenacidade dos criadores que, para toda cena de trauma, isso é, o atendimento que chega e é avaliado por mais de um dos funcionários, o diretor do episódio saía do set e quem comandava as ações era um médico de verdade, ali no papel de consultor e, por algum tempo, cineasta. Na internet, profissionais da Saúde saudaram a veracidade e a crueza do atendimento de The Pitt.
A trilha sonora é inexistente, com exceção de sons de respiração ofegante, batidas do coração e pequenos empurrões no drama inerente à vida e à morte. Com essa fachada clínica e por vezes pessimista da realidade de um hospital com poucos fundos e muito mais a resolver do que tem capacidade, a série é incisiva nos detalhados e amplos problemas de saúde que atravessam a porta.

Entre os destaques, é impossível não citar o bom samaritano que salva uma imigrante do Nepal após um ataque de ódio nos trilhos do trem; o idoso que é acompanhado pelos filhos, incertos sobre a ordem de não-ressureição emitida pela casa de repouso; o garotinho que ingere gomas de maconha; e Theresa e David, mãe e filho, protagonistas do longo arco de depressão e instabilidade emocional.
Também existe o trauma intransponível do adolescente com morte cerebral, acompanhado pelas performances mortais de Brandon Keener e Samantha Sloyan. Deste ramo dramático, a série mostra o uso de drogas na universidade, e reflete, sem soar piegas, o valor da vitalidade e da saúde.
E para cada momento de tensão cortante, The Pitt brinda o leve humor que só quem lida com o pior pode enxergar e aproveitar. Lê-se: o homem em situação de rua que aninha um trio de ratos na jaqueta. A peste é perene na temporada, gerando algumas das piadas mais afiadas, com o passado campestre de Whitaker e o lado ácido de Santos com a mal educada imprensa.

Os choques emocionais chegam para valer: a pequenina garota que salva a irmã do afogamento e não resiste ganha corpo na atuação fascinante de Dearden, incubida de conversar com a vítima e fazê-la assimilar tamanha tragédia. Sua Dra. King, embora competente e mais do que capacitada, não esconde as emoções: sorri e não acredita no que vê depois do complicado parto de um bebê – e também deixa as lágrimas rolarem depois do evento no festival.
O tiroteio que acontece perto do fim do turno é daqueles eventos cataclísmicos em qualquer série de drama. Depois de um dia (quase) completo de tensão e recompensas, a equipe das Emergências recebe o telefonema e começa o protocolo extraoficial para lidar com esse tipo de crime – a diretora Amanda Marsalis concorre ao Emmy pelo trabalho em 6:00 P.M.
No departamento criativo, a série repensou o espaço físico do hospital, mudando coisas de lugar, acumulando uma quantidade inacreditável de objetos e aparelhos médicos, além de galões de sangue falso, e colocou o caos em ordem nas dezenas de vítimas que chegam em hemorragia ao local.

É desconcertante, inumano e profundamente acolhedor assistir aos esforços mais do que sobrenaturais da equipe, que pula de leito improvisado em leito improvisado, encontrando soluções impossíveis para problemas extremos. O Dr. Abbott (o indicado ao Emmy de Ator Convidado Shawn Hatosy) volta de sua folga e acolhe Robby, sendo este um de seus maiores apoios, ao lado de Dana, igualmente fragilizada depois de ser atacada por Doug (Drew Powell), um paciente insatisfeito.
A situação pesa em Robby na hora ímpia, quando o enteado Jake (Taj Speights) chega em prantos e com a namorada morta do festival, e o doutor não opera milagre algum. A cena, filmada em tomada longa do esforço físico, mental e espiritual do chefe, ganha profundidade no cansaço escondido de Noah Wyle.

O clímax, no berçário que serve de necrotério e mesmo lugar onde Robby desligou os aparelhos de seu mentor tantos anos atrás, é sentido na animosidade e na selvageria com que o ator interpreta o choro. Ele expulsa Jake e se encolhe na parede, como um filhote ferido, sem a mãe para proteção ou segurança. É a antítese do Robby que conhecemos por doze horas, alguém que foi quebrando, peça a peça, a cada novo desafio e dificuldade.
A conversa franca com Collins, em outra cena que marca a temporada inaugural de The Pitt, tirou a última camada de armadura de Robby, que liberou a colega (e outrora amante) dos deveres médicos, mas acabou colocando-se na armadilha quase sem saída da culpa e da desolação. É Whitaker quem o recupera do abismo, em uma troca de mentor e aprendiz que espelha aquela relação implodida que Langdon sabotou com as mentiras e vícios.

Tematicamente, a série conversa com a audiência em cada detalhe: o guarda-roupa, o jeito de se portar, pequenas migalhas de história pregressa e a maneira como os médicos reagem aos desafios presentes. McKay é uma mãe amorosa, uma ex-esposa insatisfeita e uma defensora ferrenha das mulheres. Javadi, inexperiente no ramo laboral, tem sensibilidade e só precisa se impor; sua mãe aprende isso da maneira difícil, quando vê a prodígio brilhando em ação.
Dana, que flerta com a aposentadoria e o fechamento do ciclo de sua vida no hospital – local onde nasceu e trabalha desde que se entende por gente, reflete também o cansaço dos trabalhadores de saúde, sobrecarregados. Se a temporada começa com Abbott sendo resgatado por Robby no alvorecer, o caos do dia causa o efeito contrário.

Na cobertura do hospital, Wyle encara as luzes vacilantes de Pittsburgh, quando o amigo sugere terapia e depois promete uma cerveja. São nas interações – o veterano revela, depois, a prótese que usa numa das pernas -, que o roteiro brinca com as convenções e enriquece o cerne dramático dos personagens.
Santos, toda casca-grossa, enfrenta um abusador de menores, e depois acolhe o assustado Whitaker. Mohan, que perdeu o pai na infância, projeta em Robby questões de validação e decoro, e surfa forte na onda de adrenalina. O trabalho, no fim das contas, é sua única e inequívoca fonte de energia.

Mel, afoita para buscar a irmã e descansar de um turno impossível de ser descrito, é tão ou mais humana que seus colegas, e erra sem pensar, como no caso da filha que cuida sozinha da mãe idosa – é tudo questão de perspectiva e conhecimento. Culpa, felicidade, emoção e o opaco senso de mortalidade se misturam na cabeça de quem cuida dos feridos e de quem assiste, em uma situação de confinamento sentimental às paredes do pronto-socorro, tudo iluminado com o clarão do hospital e com tamanha atenção para as técnicas corretas de luz em peles de diferentes tons.
E temas quentes, como negacionismo e o movimento anti-vacina, são estudados com cautela por The Pitt, que mostra com fatos as mazelas difundidas na internet. Para os saudosos pelos tempos de E.R., um caso de sarampo alerta Robby para a falta de cuidado de alguns pais. Uma ambulância é vítima de roubo, em parcela que mistura a comédia da aposta entre os funcionários (com Collins, de forma trágica, gastando o dinheiro da vitória com um carrinho de bebê chique) com a realidade desmedida de adolescentes em busca de diversão e regras quebradas.

Devemos imaginar Sísifo feliz, define um dos personagens de The Pitt, na exata definição árdua e desgastante do trabalho com o público – muitas vezes alheio aos esforços e aos sacrifícios. A audiência, por outro lado, reconheceu a série com louros e o crescimento boca a boca que apenas um lançamento semanal poderia oferecer.
O pacote de 15 episódios não afugentou ninguém; pelo contrário, deu tempo das pessoas se atualizarem a fim de acompanhar o final do turno. No Gotham TV Awards, The Pitt saiu com o prêmio de Drama. No Emmy 2025, surgiu mais tímida que suas concorrentes do gênero, com lembranças onde mais importa: para Noah Wyle, o favorito ao prêmio de Ator, e que também escreve alguns capítulos e assina a produção executiva.

Parte do apelo de The Pitt é justamente o DNA da velha guarda vitaminado com narrativas modernas. A série não abre mão de arcos convencionais, mas o faz com astúcia e muito controle cênico. Na era em que os dramas levam uma porção de anos para produzirem meia dúzia de episódios, é um alívio descobrir que a segunda temporada está sendo gravada, tem previsão de estrear em Janeiro de 2026 e acompanhará o fim de semana da Independência americana.
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