Um curta-metragem brasileiro chamou a atenção no Festival de Cannes em 2014. Sem Coração levou o Prêmio Illy da Quinzena de Realizadores, como curta de destaque naquele ano. Cerca de uma década depois, a dupla de diretores Nara Normande e Tião expandiu as calorosas férias no litoral alagoano para um longa-metragem, que aprofunda seus personagens e as aventuras de cada um.
Em 2014, Léo (Rafael Nicácio) passa as férias na casa do primo em Maceió. Entre tardes ensolaradas e mergulhos com os amigos, ele é apresentado à Sem Coração (Eduarda Samara), uma menina local que desperta sua curiosidade. O curta é sucinto, como permitem seus 20 e poucos minutos, mas dão um gostinho de juventude e da descoberta da sexualidade que o tornam tão encantador.

A piscina esvaziada, que vira palco de momentos de transformação em ambos os Sem Coração, retorna em 2023. No longa-metragem, Léo vira Tamara (Maya de Vicq), moradora do litoral de Alagoas que está aproveitando seus últimos dias de férias com os amigos antes de se mudar para Brasília, a estudo. Assim como uma década antes, Sem Coração aparece em uma tarde ensolarada de banho de mar.
Ela vem acompanhada de uma cicatriz no peito, à frente do coração, que motivam o apelido e criam uma verdadeira mitologia na cidadezinha. E como qualquer lenda local, as crianças do grupo protagonista são atraídas para o mistério que cerca a menina… especialmente Tamara.

O roteiro, inspirado na juventude de Normande, dá atenção para seus personagens, um grande trunfo do longa em relação ao curta. O grupo de amigos é formado por crianças de diferentes idades e contextos. Tamara e o irmão, por exemplo, vêm de uma família estruturada e de classe média da região, enquanto Galego (Alaylson Emanuel), o mais velho do grupo, acabou de sair da Febem (como era chamada nos anos 90) por roubos e furtos, e foi obrigado a voltar a conviver com o pai abusivo.
As diferenças entre eles tornam a dinâmica interessante e dão aos diretores espaço para explorar as relações dos personagens uns com os outros. Um dos destaques, além de Emanuel, é Binho (Kaique Brito), que, perseguido por outros moradores da cidade por se relacionar com um menino, recebe apoio inquestionável dos amigos.

A relação entre Tamara e Sem Coração, no entanto, é o que mais chama atenção. Assim como aconteceu com Léo em 2014, a menina misteriosa provoca a curiosidade da protagonista. Já desta vez, há tempo para elas trocarem olhares, se aproximarem e entenderem o que há por trás da atração crescente.
Entre mergulhos, passeios de bicicleta e casas de veraneio invadidas só por diversão, o grupo de amigos essencialmente está crescendo e se descobrindo – e a sexualidade vira ponto chave na trama. Meninas e meninos exploram os próprios corpos, juntos e separados, e buscam entender suas vontades e desejos.

No caso de Tamara, o encontro com Sem Coração a força a confrontar o desconhecido dentro de si mesma. Não adianta sair da cidade e começar uma vida nova em outro lugar sem se entender.
Normande e Tião aproveitam o momento de incertezas e angústias, comuns ao processo da descoberta da sexualidade, para guiar o longa rumo ao fantástico, como se a união entre as duas e os sentimentos florescendo ali fossem algo realmente mágico. E de certa forma, pode parecer assim mesmo.

Mas o verão sempre acaba e as férias chegam ao fim . Beijos escondidos, mãos dadas e olhares furtivos, tardes de sol em uma piscina vazia ou rolês noturnos na festinha do centro acabam. Sem Coração não cede ao óbvio. Não há declarações de amor ou grandes atos de despedida. Quando cada um vai para o seu lado, como a vida obriga todos os amigos a fazerem, algo mudou em todos eles.
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