Maria Carmem escreve uma carta para o Homem-Aranha, embora ele não seja seu remetente ideal. Ela tem 11 anos e não sabe bem para quem endereçar os sentimentos e conflitos da idade de solidão infinita. É ideia da professora que a menina comece um diário.
Em tempos modernos, o papel é substituído pelo computador, onde ela desata a escrever e construir o futuro sonho de ser escritora. Os assuntos são diversos, mas rotacionam ao redor de um tema particular, sua total e enorme tristeza.
“Meu pai estava ali, como sempre amando minha mãe daquele jeito como nenhum homem jamais me amará em toda a minha vida, e eu apareci, um bloco de solidão, que é a minha consistência”.
Se deus me chamar não vou, livro escrito por Mariana Salomão Carrara e publicado pela editora Nós, coleciona proezas. Em primeiro lugar, encontra a voz infantil de sua protagonista com tamanha exatidão que assusta. Poucas coisas são mais difíceis do que tratar da infância na Arte sem soar pedante, forçado ou maquiado demais.
Ao longo das 160 páginas, a autora o faz com total controle e molejo. Os pensamentos se atravessam em momentos de devaneio e profunda dilaceração do coração da menina, que é gorda, não tem amigos e muito menos a atenção dos pais. “Eu sempre viro filha apenas do outro quando gero algum desgosto”, ela confessa.

Estes que são jovens, donos de uma “loja de velhos” e alheios aos desejos da filha. O estabelecimento não vende idosos, e sim aparatos e apetrechos usados pelos cidadãos da terceira idade, como cadeira de rodas, bengalas e todo tipo de parafernalha que facilita a vida, mas para ela é tudo parte do mesmo bolo.
Em contraste, Maria Carmem perde horas olhando pela janela do apartamento, onde se imagina abrindo o portão para os visitantes e moradores, incapaz de comunicar o que sente para além das palavras na tela do computador. Tudo piora quando ela tenta melhorar as coisas, e apresenta um especialista em Gerontologia para os pais.
“Minha mãe era dançarina quando era nova, mas duas coisas atrapalharam: eu, e a loja. Eu como problema, e a loja como solução para o problema, eu acho”.
O amor compartilhado entre os três envenena a percepção do mundo da menina, que leva para a escola as diversas cicatrizes da alma, que, claro, resultam na fermentação de mais desordem e momentos onde Maria Carmem enxerga o precipício como único caminho e perdição.
Carrara, com a simplicidade da visão de uma criança, cria uma experiência sufocante e desconfortável, já que quem lê pode apenas ouvir as lamúrias sem possibilidade de acudir a pequena Maria Carmem. Se deus me chamar não vou simplifica a mais pura das emoções, num ambiente onde o amor é antônimo de rotina e alguém que mal passou pela infância precisa enxergar o mundo por vias descoloridas.
“Acho que vem daí a palavra solidão, pessoas tão sólidas que ninguém vem checar se estão ruindo”.
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