Em 3 curtas temporadas, a comédia Reservation Dogs conseguiu emocionar e contar uma história de pertencimento e família à perfeição. Na trama, um quarteto de adolescentes indígenas vivem à margem das expectativas dos adultos e sonha em sair da reserva e se mudar para uma metrópole.
Os sonhos são plurais: ser artista, ser rico, ser livre. A terceira temporada, que concorre a 4 Emmys na edição de 2024, é mais do que uma singela despedida dos amigos. Ela é, por via das dúvidas, um testamento do poder de Rez Dogs, a menina dos olhos de ouro de Sterlin Harjo e Taika Waititi, dois realizadores indígenas que caminham a passos lentos na construção da identidade de seus povos em Hollywood. Waititi é neozelandês e tem pai maori de Te Whānau-ā-Apanui, enquanto Harji é cidadão da nação Seminole e tem herança Muscogee.
Como vitrine de talentos à frente e por trás das câmeras, a comédia coleciona figuras conhecidas. Das participações especiais de Amber Midthunder, Dallas Goldtooth e Lily Gladstone, também sobra espaço para que cineastas ensaiem seus dotes de produção: Erica Tremblay, de Fancy Dance, dirigiu alguns episódios, assim como Devery Jacobs, protagonista que assina como roteirista e diretora.
Pensada como um longo arco de amadurecimento para os personagens, o que destoa Reservation Dogs do restante da safra televisiva é justamente o carinho impresso em cada etapa da produção. Além disso, Harjo é preciosista no tratamento dos habitantes da reserva em Oklahoma, olhando com carinho para os adolescentes, os adultos e os idosos.
Nesta história, todos são importantes. E são tratados como tal, com episódios individuais que se debruçam em questões minúsculas, mas que dizem respeito ao caráter e histórico deles. Até a mitológica Deer Lady (Kaniehtiio Horn) ganha meia hora de redenção e explicações na season 3, ajudando Bear (D’Pharaoh Woon-A-Tai) a voltar para casa. Misturando o real com o onírico, cria-se então uma atmosfera estrangeira ao que o público acostumou-se a assistir, especialmente na grade do FX.
Reservation Dogs é tão marcante e tão especial justamente por ser pioneira em muitas de suas ações: com um elenco inteiramente indigena (e o White Steve, é claro), o senso de comunidade é transposto de várias maneiras. Por Cheese (Lane Factor), o mais jovem e mais doce dos personagens, qualquer sinal de raiva transforma-se em compreensão.
Com a fantástica Willie Jack (Paulina Alexis), há a certeza de que não é preciso se afastar de casa para alcançar os sonhos. À Elora (Devery Jacobs) que se alça ao papel de protagonista ao lado de Bear, um arco de abandono é agraciado com lembranças da avó Mabel, que morre na segunda temporada e deixa para a neta uma parcela de ensinamentos e obrigações. Primeiro, ela enxerga o presente como dúbio, mas é Rita (Sarah Podemski), amiga da mãe também falecida da jovem, quem abre seus horizontes.
A morte é tão parte da jornada quanto a vida, e o time de Rez Dogs entende o valor dos anciões, dedicando o sexto episódio a retornar à juventude dos tios e avós dos adolescentes. Lá, conhecemos mais dos laços, rompidos pelo tempo e por mágoas maiores que os amores, para depois assistirmos os jovens guiarem os idosos para um lugar de harmonia e paz. É genuíno na mesma moeda que é revelador.
Os ciclos de violência, mental, física e geracional, são quebrados pela certeza de que, como comunidade, os indígenas daquela reserva não tem nada além deles mesmos. O policial Big (Zahn McClarnon) carrega uma culpa que obstrui qualquer outro objetivo de vida, assim como a relação dos primos Fixico (Richard Ray Whitman) e Maximus (Graham Greene), apartados por motivos que parecem ridículos demais para separá-los para sempre.
Com uma abundância de coadjuvantes de estilo, há margem para todo tipo de situação, dos gêmeos que fazem rima enquanto pedalam por aí até a figura excêntrica da recepcionista que masca chiclete alto demais, o doutor asiático que caiu de paraquedas e até os donos de um ferro-velho cheio de mistério e roubos. Isso sem falar na redenção de “vilões”, como Jackie (Elva Guerra), que compartilha com Elora mais do que uma viagem de carro.
O tema do luto, compartilhado por toda a comunidade após o suicídio de Daniel (Dalton Cramer) é objeto de estudo do roteiro, aproximando pelas beiradas aqueles que silenciaram qualquer resquicio de relação. E isso é perene ao longo das 3 temporadas, ou 28 episódios, sem pressa de resolver questões delicadas ou sensíveis. O capítulo final se dedica ao ritual de velório de um dos anciões, mostrando o respeito e a serenidade do momento, que ganha aura de serenidade pela luz do Sol.
Numa reserva onde todo mundo é família, seja de sangue ou de criação, o que Rez Dogs faz é atrair a audiência com as excentricidades (espíritos malucos, ensinamentos bizarros) e mantê-la hipnotizada pela qualidade do material apresentado: uma riqueza de temas, piadas, situações recorrentes e o ocasional embrulho no estômago, propiciado por uma troca de confidências, um vislumbre fotográfico e até pela evolução dos delinquentes mais do que carismáticos que estampam os pôsteres estilosos da série.
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