Renúncia, denúncia e repulsa: a Literatura nuclear de Édouard Louis

Escritor francês fez carreira na autoficção que mira na memória e acaba revelando o esqueleto dos problemas sociais

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A pequena Hallencourt, no Norte da França, registra mil e quinhentos habitantes. Entre eles, está Édouard Louis, o escritor que precisou mudar de nome, de aparência e de fundação para considerar-se alguém de verdade. Nascido Eddy Bellegueule em 1992, narrou a infância regada a abuso, violência e homofobia no habilmente intitulado O Fim de Eddy¹, um livro abrupto e inquietante, mas não menos emocional ou vigoroso.

E foi na Literatura que mistura memória, reflexão e biografia que Louis firmou-se um expoente da autoficção francesa que herda de nomes como Annie Ernaux e Didier Eribon os traços de vulnerabilidade e tensão social. Seus livros, publicados no Brasil entre os catálogos da Tusquets e da Todavia, passeiam pela ingratidão dos pensamentos juvenis, num espiral que fere quem lê e quem escreve.

Louis não esconde os dois gumes da relação de liberdade, com a culpa de deixar o passado para trás e o desejo de encontrar um futuro de prosperidade (Foto: Reprodução)

“Você se desculpou. É uma novidade isso, você pedir desculpas, preciso me acostumar”.

O exercício de olhar para si e enfim entender quem se é hoje, algo tão natural quanto violento para o escritor, é transmitido com autenticidade e muita liberdade nas palavras. Das surras que levava na escola, Louis destila sentimentos antagônicos: “O ruivo grande e o outro de ombros caídos me batem uma última vez. Eles vão embora de repente. Logo estavam falando de outra coisa qualquer. Frases cotidianas, insípidas – e essa constatação me magoava: eu significava menos na vida deles do que eles na minha. Eu lhes consagrava todos os meus pensamentos, minhas angústias, desde a hora em que acordava. Sua capacidade de me esquecer tão rapidamente me atingia.”¹

Mais tarde, olha com o mesmo esmero para as feridas que criava em si mesmo, em trechos como “meu rosto parecia enrugado por causa das surras, que me envelheciam. Eu tinha onze anos, mas já era mais velho que minha mãe”¹, ou mesmo no trato que dirige aos pais, figuras de amplo domínio em sua criação e mais sofrimento ainda; “na casa dos meus pais, nós não jantávamos, nós comíamos”¹.

Louis destaca a gratidão e a vergonha com que se aproxima de novas relações, em constante estado de avanço para a “próxima etapa” da vida (Foto: Reprodução)

“Ela não é mais minha mãe. Talvez por isso o vínculo entre nós tenha se tornado possível”³.

Não à toa, Louis dedicou parte de sua labuta no retrato daqueles que o colocaram no mundo. A mãe ganha duas idealizações: Lutas e Metamorfoses de uma Mulher², que narra o fim do casamento com o pai alcoólatra, e Monique se Liberta³, acompanhando o relacionamento que veio na sequência, quando sua resiliência foi equiparada apenas pela tristeza que chamava de rotina. Nestes livros, que não passam das duzentas páginas cada, Édouard se coloca como espectador e fabulista, muitas vezes imaginando o que a mãe pensava, faria ou sentia.

Tampouco ele subestima a mulher: “Sua vida tinha sido, até agora, uma vida para os outros”. Nas palavras diretas do filho, a mãe surge primeiro como algoz e depois como agente das próprias circunstâncias (“Ela não era apenas mãe de cinco filhos, sem dinheiro, sem perspectiva, era também prisioneira do espaço doméstico. Todas as portas estavam fechadas”²), e por se tratar de uma literatura de relato muito pautada na atualidade, cada livro se encaçapa no seguinte, com histórias se embaralhando, pessoas cruzando situações múltiplas e reações familiares sendo sentidas em “tempo real”. 

Com tradução de Marilia Scalzo, a Todavia lançará O Desabamento, livro que retrata a morte do irmão mais velho do escritor (Foto: Editora Todavia)

“Disseram-me que a literatura nunca deveria se repetir, e tudo que eu quero é escrever a mesma história, de novo e de novo, voltar a ela até que revele fragmentos da sua verdade, cavar um buraco atrás do outro até o ponto em que o que está escondido comece a ressumar”².

Louis não esconde a inquebrável ironia da situação: “Ela ficou com raiva de mim — assim como minha irmã — por eu ter escrito um livro sobre minha infância e sobre nossa família. Mas, paradoxalmente, foi porque escrevi esse livro, e depois os outros, que ganhei o dinheiro que agora eu podia gastar com ela”³. Na reconstrução dos eventos que o moldaram como homem, como cidadão e como pessoa avessa aos ideais de uma pobre vila da França, Louis precisa do desconforto para desbravar o terreno.

Em Quem matou meu pai⁴, ele investiga o regime do país, citando nomes de políticos que transformaram a economia em carniça e aceleraram a degradação da classe trabalhadora. Depois de dedicar anos de sua vida à única fábrica que pagava um salário menos que decente, o pai Belleguelle teve as costas “moídas” pela máquina, incapacitado de prover para os cinco filhos. O resultado é negativo e nefasto para todos os habitantes da casa; os irmãos mais velhos de Louis, filhos do casamento anterior da mãe, colecionavam violência e abuso em papéis diferentes, ao passo que os caçulas  eram jovens demais para entender a magnitude da situação.

Convidado destaque na Festa Literária de Paraty de 2024, Louis também apareceu como entrevistado no programa Roda Viva (Foto: TV Cultura)

“Será que estou condenado a sempre esperar uma outra vida?⁵”

A melancolia impera a relação com o homem, a quem Louis constantemente observa de longe, apesar das boas memórias perdidas e minguadas entre a homofobia e o preconceito. “Esqueci de quase tudo que eu disse quando vim vê-lo, na última vez, mas me lembro de tudo que não disse. De maneira geral, quando penso no passado e na nossa vida comum, lembro primeiro de tudo que eu não disse a você, minhas lembranças são do que não aconteceu”, ele escreve, à certo momento. Um pouco antes, define rapidamente a dinâmica, como em “muitas vezes tenho a impressão de que amo você”, ou em “(falo de você no passado porque não o conheço mais. O presente seria uma mentira).

As relações de casualidade de Louis com ele mesmo, já longe de Hallencourt e situado na cidade grande, são mais trabalhados em Mudar: Método⁵, um guia não intencional de tudo que ele precisou destruir para ser quem é, e também em História da Violência⁶, quando revisita o estupro que sofreu no dia de Natal. Ao passo que o primeiro exemplar é categórico na temporalidade dos ventos, o segundo se apresenta na forma de catarse emocional.

Louis faz sucesso entre um público que busca a gravidade das memórias e sequelas de sua criação (Foto: Reprodução)

“Sonhei ser reconhecido na rua, sonhei ser invisível, sonhei desaparecer, sonhei acordar um dia de manhã sendo uma menina, sonhei ser rico, sonhei recomeçar tudo”.

O crime, cometido por um homem que pode ou não se chamar Reda e ocupa a mente de Louis com extravagância e muito terror, é atestado pelos depoimentos dele para a polícia, para a médica, para a irmã e para ele mesmo. Os fatos se contorcem nas confabulações imateriais, com muita dor sendo transmitida pelas lembranças que o ataque desperta em seu inconsciente. A vantagem de ler tudo, sem pausa para respirar, é enxergar a vida de Louis, e portanto, suas diversas mortes e renascimentos, como uma imagem em constante mutação.

“Foi necessário que eu me afastasse do passado para entendê-lo, e se eu quisesse escrever uma autobiografia cronológica, precisaria começar por Amiens e só contar a vida na nossa cidade depois, porque precisei chegar ao colégio para realmente enxergar minha infância”⁵, ele sedimenta em Mudar, só para demolir a construção de uma carranca heróica de si mesmo em História da Violência, quando pondera com o destino e mais uma vez declara a insatisfação dessa posição de ideal: “Mas sou eu quem deve pagar o preço? Tê-lo vivido já não basta?”⁶.

“É meio irônico se você pensa. Eu acho engraçado. O Édouard põe uma máscara e faz tão bem seu papel que no fim até gente parecida com ele ataca ele pensando que ele é do campo inimigo”⁶ (Foto: Reprodução)

O avanço desenfreado da tecnologia, que passou de aliada a possível ameaça ao cidadão comum, representa essa antítese do que prega Louis em seus ensaios pessoais e muitas vezes simples no que refere-se à construção estética e material da Literatura. Ele investiga um passado banal e muitas vezes reconhecível, além de não entregar a si mesmo a carapuça de vítima ou perseguido. Seus livros registram a dor inata da humanidade, a falta de apoio no alicerce da personalidade de alguém destinado a ser distinguível.

Nos episódios de homoafetividade, que começam como encontros infantis com os primos e passam para o lado romântico quando ele se desloca da roça e usufrui da internet e dos aplicativos de encontro, a história ganha contornos quase fabulescos, numa mímese das relações que ele construiu em casa. “Brincar de homossexual era uma maneira que eles tinham de mostrar que não o eram. Era preciso não ser bicha para poder brincar que era, por uma noite, sem ser xingado”¹

Louis e a mãe, musa de sua Literatura confessional (Foto: Reprodução)

Quase como mecanismo de defesa que se revela mais nocivo para ele do que para seus arredores, a ideia de ser gay, isto é, negar aquilo que o mundo inteiro esperava dele, era apenas um adendo na vida de alguém que tinha quase nada a comer e menos ainda a aproveitar na vida. Afinal, para alguém que nunca entendeu sua hierarquia entre as quatro paredes e cercado por mamãe, papai e irmãozinhos, Louis não acredita que a saída, ou a resposta, estejam escancaradas.

“Minha cura veio daí. Minha cura veio dessa possibilidade de negar a realidade”.

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