O universo poético do Studio Ghibli por meio da pureza de Ponyo

Na simplicidade do amor infantil, Miyazaki constrói uma fábula que honra o mar e a natureza

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Ponyo, dirigido por Hayao Miyazaki, é uma celebração da infância, da natureza e da imaginação. Nele, uma pequena criatura marinha, Ponyo, sonha em se tornar humana após conhecer Sosuke, um menino de cinco anos. A fábula traz o oceano como espaço de fantasia, em que o mar é uma força viva que interage com os personagens e representa a linha tênue entre o real e o mágico. Com essa obra, Miyazaki reforça o lirismo característico de seu trabalho e dos filmes do Studio Ghibli, abordando temas como a inocência, o amor verdadeiro e o respeito pela natureza.

Exibido na 1ª Mostrinha, a seção infantil da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Ponyo cativou uma nova geração de espectadores, refletindo a habilidade do Studio Ghibli em criar animações que vão além do entretenimento infantil. Recentemente, O Menino e a Garça, outro filme de Miyazaki, ultrapassou Ponyo em arrecadação nas bilheterias norte-americanas, reafirmando o impacto global do diretor e o fascínio duradouro pelo trabalho do Studio Ghibli.

A simplicidade e a pureza do relacionamento entre Ponyo e Sosuke, dois jovens que se apaixonam e prometem amor eterno, são o coração da narrativa. Sosuke foi inspirado no filho de Miyazaki, Goro, de apenas cinco anos na época. Usar essa experiência próxima trouxe ao personagem um carisma autêntico, refletindo a visão sensível do diretor sobre a infância. Miyazaki é capaz de capturar o fascínio, a curiosidade e a doçura infantil de forma tão fiel que o amor puro entre as crianças se destaca em sua sinceridade e falta de malícia. 

Ponyo é levemente inspirado em “A Pequena Sereia” (1989), da Disney, devido à temática de uma criatura aquática desejando ser humana [Foto: Studio Ghibli]

A escolha de desenhar o filme à mão, com cores suaves e cenas que parecem pintadas em aquarela, reforça o clima infantil e encantador da obra. Essa estética única remete diretamente a Meu Amigo Totoro, outro clássico de Miyazaki, que também explora o universo das crianças e sua conexão com o desconhecido e o mágico. Em Totoro, o fantástico surge de forma natural no cotidiano, sem a necessidade de justificativas, algo que Miyazaki faz com maestria em Ponyo, onde o mar é, ao mesmo tempo, um ambiente real e encantado.

Outro ponto importante a ser destacado é que Ponyo subverte os estereótipos das histórias de vilões ao criar personagens complexos, sem antagonistas absolutos. O “vilão” do filme, Fujimoto, pai de Ponyo, é uma figura que se posiciona entre o bem e o mal: um feiticeiro do fundo do mar que, por amor à filha, tenta trazê-la de volta para casa. Sua motivação não é maligna, mas é movida pela preocupação paternal e pelo desejo de proteger o equilíbrio natural. Essa ausência de um maniqueísmo claro é uma marca dos filmes de Miyazaki, também visível em Princesa Mononoke, em que as forças de “bem” e “mal” estão entrelaçadas e refletem questões éticas profundas.

Assim como em A Viagem de Chihiro, Ponyo utiliza a transformação física como metáfora para o crescimento pessoal e a busca por identidade. Enquanto Chihiro precisa abandonar sua ingenuidade para sobreviver no mundo dos espíritos, Ponyo busca sua humanidade para se aproximar de Sosuke, criando um paralelo entre essas jornadas de autodescoberta. No entanto, ao contrário da complexidade sombria de A Viagem de Chihiro, Ponyo mantém um tom mais leve e esperançoso, refletindo o amor de Miyazaki pela simplicidade do universo infantil.

Cada detalhe dos animais aquarelados torna sua existência ainda mais vívida e reforça o caráter artesanal da obra (Foto: Studio Ghibli)

Como em outros filmes do Ghibli, Ponyo também traz uma crítica ambiental forte, alertando para o estado degradado dos mares devido à ação humana. Em um cenário de poluição e desperdício, a natureza é mostrada como uma força retaliadora, capaz de perturbar a ordem humana para reafirmar sua presença. Miyazaki não poupa a responsabilidade das gerações adultas. Nesse caso, a obra se torna, ao mesmo tempo, uma história de amizade e uma mensagem de preservação ecológica, em que a natureza tem um papel de resistência.

A trilha sonora de Joe Hisaishi, colaborador frequente de Miyazaki, reforça a leveza e o encantamento de Ponyo. A música carrega a narrativa com um tom sonhador, especialmente nas cenas subaquáticas, onde os sons fluidos da orquestra nos envolvem em uma atmosfera mágica. Hisaishi já havia criado composições memoráveis para filmes como O Castelo Animado, mas em Ponyo, a simplicidade melódica reflete o espírito infantil da obra, com canções que soam quase como cantigas de ninar.

Por isso, Ponyo, disponível na Netflix, se destaca por sua pureza emocional. É uma obra que nos convida a enxergar o mundo através dos olhos de uma criança, onde o mar pode ser tanto um playground quanto um reino encantado, e onde a amizade e o amor incondicional são capazes de superar qualquer barreira, seja ela física ou mágica. A obra nos lembra do poder do afeto e da imaginação, ao mesmo tempo em que reforça a importância da preservação da natureza. Uma lição que, no universo de Miyazaki, nunca perde a relevância e que reverbera em nosso entendimento sobre o que é verdadeiramente essencial.

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