O Serviço de Entregas da Kiki sai mágico, mas volta humano

Animação clássica do Studio Ghibli chegou aos cinemas no final dos anos 1980 e usou fundamentos da bruxaria para narrar as descobertas da adolescência

min de leitura

Recém-chegada aos 13 anos, a bruxa Kiki deve seguir uma antiga tradição familiar: deixar o conforto do lar e partir em direção a uma cidade desconhecida para aperfeiçoar sua magia. Na bagagem, vão pitadas de coragem, o gato preto Jiji e a vassoura talhada pela mãe da jovem. Esse panorama cunhado no ano de iniciação vivido por feiticeiras da vida real pode não impressionar logo de cara, mas a viagem de transformações que norteia O Serviço de Entregas da Kiki embala até quem já saiu do ninho.

Dirigido, escrito e produzido por Hayao Miyazaki, ilustre fundador do Studio Ghibli, o longa foi originalmente lançado em 1989, mas voltou aos olhos e corações do público como integrante da 1ª Mostrinha, seção infantil da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. A história se baseia no livro homônimo de Eiko Kadono, adquirindo, através das possibilidades visuais e sonoras da sétima Arte, novos sentimentos e desafios ligados à jornada de descobertas da protagonista.

Ainda em 2024, O Menino e A Garça, outra criação do Studio Ghibli, venceu o Oscar de Melhor Animação (Foto: Netflix)

Como em outras criações de Miyazaki, O Serviço de Entregas da Kiki ganha força gerando uma ruptura no processo de crescimento, mais especificamente na curva abismal entre o senso de independência e a autoconfiança. Inicialmente, Kiki encara o rito de passagem como uma oportunidade de colocar seus aprendizados à disposição do mundo e realizar o sonho de morar perto do mar. Ela se instala em um município litorâneo, mas não demora a perceber que precisará de mais equilíbrio e persistência para conquistar seu próprio espaço no local do que para sobrevoá-lo.

Assim, surgem as conexões da garota com a gentil Osono, dona de uma padaria e primeira acolhedora de Kiki, e o divertido Tombo, que conquista a amizade da bruxinha aos poucos, além do serviço de entregas rápidas que dá nome ao filme. Clientes, atrasos, pagamentos e tantos outros aspectos corriqueiros que atravessam o negócio são tratados com muita delicadeza e tenacidade por Miyazaki, enfatizando que cada uma dessas situações provoca consequências diretas na consciência e no caldeirão de experiências da protagonista. 

Nos momentos-chave do longa, inclusive, nada atinge o fluxo de ideias de Kiki sem passar pelo crivo afiado de Jiji. Enquanto familiar – espírito que serve às bruxas e geralmente assume a forma de um animal -, o gato desempenha um papel de mentor bem carismático, longe de beirar ao fatalismo, também representando o elo da jovem com as memórias do vilarejo deixado no interior do Japão.

Sucessor de Meu Amigo Totoro, O Serviço de Entregas da Kiki foi o primeiro filme do Studio Ghibli a obter sucesso comercial imediatamente após o lançamento (Foto: Netflix)

Na verdade, boa parte dos dilemas que se somam à trajetória de Kiki é fruto do caos urbano, materializado na cidade fictícia de Koriko. Tendo como inspiração Estocolmo e Visby, localizadas na Suécia, os cenários de O Serviço de Entregas da Kiki são minuciosamente detalhados e coloridos, permitindo uma imersão profunda em casas, lojas, céus e oceanos, conforme as andanças da protagonista. 

As técnicas de animação usadas pelo Studio Ghibli também trouxeram inovações para a época, mesclando desenhos à mão com a então novidade dos efeitos digitais. A sensação de liberdade ocasionada pelas cenas em que Kiki alcança o pleno voo, por exemplo, é puramente intencional. 

O trabalho da trilha sonora de Joe Hisaishi, parceiro frequente de Miyazaki, se torna outro feitiço jogado na confecção do filme. Quando não está transmitindo notícias (que funcionam como um portal para as características do planeta que a bruxinha deseja se aproximar), o saudoso rádio vermelho carregado por Kiki reproduz canções que refletem seu estado de espírito e ampliam a atmosfera da narrativa.

Assim como Ponyo, O Castelo Animado e A Viagem de Chihiro, O Serviço de Entregas da Kiki está disponível na Netflix (Foto: Netflix)

Não existem soluções simples para compreender a complexidade da vida, nem poção que salve as bruxas em formação de lidar com os tropeços que levam ao autoconhecimento. Retratando elementos clássicos da mitologia mágica, mas não se envaidecendo deles para evoluir sua protagonista – uma feiticeira que usa um típico vestido preto acompanhado de um irreverente laço vermelho na cabeça -, o longa sabe converter a vulnerabilidade de Kiki em um encanto duradouro. Vilões não são nomeados, porque o foco está justamente nas transições que uma menina na pré-adolescência adentra e confronta ao crescer. 

Primeiro filme do Studio Ghibli a ser distribuído pela Disney, O Serviço de Entregas da Kiki também significou uma oportunidade de expansão e reconhecimento para os feitos de Miyazaki e outros cineastas do grupo. Hoje, o estúdio de animações é referência em criatividade e responsável por dezenas de outras obras aclamadas mundialmente. A sensibilidade, afinal, sempre será a magia que muda tudo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *