Não é por acaso que Meu Amigo Totoro foi o escolhido para abrir a première da Ghibli Fest, evento que exibe os principais clássicos do Studio Ghibli em cinemas de todo o Brasil. Antes de se tornar um fenômeno global da animação, antes de ganhar a alcunha de ‘Disney do Japão’ pelo ocidente, foi o lançamento desta singela história, estrelada pelo híbrido de um urso e uma coruja mais fofo que existe, que mudou a trajetória da empresa para sempre.
Lançado originalmente em 1988, Meu Amigo Totoro foi o segundo filme de Hayao Miyazaki pelo Studio Ghibli, que completa 40 anos em 2025. Sua estreia aconteceu em uma sessão dupla com o devastador Túmulo dos Vagalumes, do seu mentor e parceiro Isao Takahata. Nesse período, com o estúdio dando os seus primeiros passos, foi Totoro que apontou a direção dos próximos longas do diretor, estabelecendo convenções que tornaram-se marcas registradas em obras futuras.

Tudo isso aliado ao fato de que Totoro virou uma febre tão grande que naturalmente tornou-se o mascote do Studio Ghibli, e é incontestável que este é o filme mais importante de sua história. Entretanto, quem escuta essa descrição e entra em contato com a obra pela primeira vez pode se surpreender, tamanha a sua pequenez. Meu Amigo Totoro está longe de ser um épico. Há quem argumente que este é o trabalho mais trivial da carreira de Miyazaki. E é aí que está sua maior força.
Meu Amigo Totoro (ou Tonari no Totoro, na língua original) acompanha duas irmãs, Satsuki e Mei, que se mudam para o interior com o pai em uma antiga casa de campo. Para essas crianças, qualquer coisa pode ser fonte de diversão. De um pilar de madeira podre a pequenas sementes que caem do teto da sala, a dupla desvenda o potencial de cada um desses elementos corriqueiros e transformam o processo de mudança em uma grande brincadeira.

Desde já, somos introduzidos a um ambiente absolutamente caloroso. A época em que Meu Amigo Totoro se passa é incerta, mas Miyazaki propositalmente estabelece um panorama igualmente nostálgico e limítrofe ao espectador. O contexto nos permite conjecturar que os personagens viveriam em meados dos anos 50, em um mundo em que o Japão não sofreu com as mazelas da Segunda Guerra, ou em que a guerra sequer aconteceu.
Em um contraste frontal a Túmulo dos Vagalumes, um filme de guerra que revela a natureza brutal e apática que a humanidade pode encarnar, Meu Amigo Totoro é uma obra essencialmente idealista. A comunidade ao redor das protagonistas é unida, colaborativa e as acolhe com imediata e irredutível gentileza. Cada um desses personagens incorpora o que Miyazaki enxerga de melhor nas pessoas.

Conforme exploram o espaço e conhecem seus novos vizinhos, as irmãs descobrem que aquela não é uma casa normal. Os cômodos vazios e abandonados são habitados por criaturas mágicas: Susuwatari, ou espíritos de fuligem. Satsuki e Mei não têm medo. Ao invés disso, ficam empolgadas com a possibilidade de interagir e amigar-se com as “assombrações”.
O que elas não sabiam é que esse era só o começo. Certo dia, em que Mei está brincando sozinha no quintal, ela encontra dois bichinhos carregando um saco de sementes e decide segui-los floresta adentro. O caminho a leva para dentro de uma canforeira ao lado da casa, onde habita um espírito da floresta: o grande, peludo e famigerado Totoro. Ela adormece na barriga do gigante preguiçoso, que reage com tranquilidade à nova companhia.

Mais tarde, Satsuki volta da escola e, procurando sua irmã mais nova junto do pai, a encontra sozinha, deitada no chão em meio à trilha de arbustos. O motivo já tinha sido antecipado pela ‘vovó’ da vizinhança momentos antes: Totoro só permite ser visto por crianças. Essa será a premissa que guiará Meu Amigo Totoro até o final de seus 86 minutos, sendo o acesso das crianças a esses seres fundamental para a resolução dos conflitos que virão a seguir.
Que conflitos? Acontece que a família se mudou para aquela casa em particular para ficar mais próxima da mãe, que está internada em um hospital. Os médicos informam que sua recuperação corre bem e a alta está mais perto do que nunca, de forma que todo o filme se molda ao redor da expectativa do seu retorno. O vilão de Meu Amigo Totoro é a doença, que — apesar da tensão temporária — já tem sua derrota como garantida.
Hayao Miyazaki, na verdade, constrói uma série de pequenos contos, que demonstram as ferramentas usadas pelas irmãs para lidar com as próprias angústias. Totoro é a expressão máxima de realismo mágico: uma manifestação da criatividade infantil em meio a dura rotina. Ele é palpável, ao mesmo tempo que indubitavelmente constituído dentro da cabeça delas.

Para o diretor, esse é o verdadeiro poder da infância: de imaginar e materializar universos inteiros, realidades capazes de mudar a nossa. Não apenas validar as crianças enquanto indivíduos autônomos, mas também compreender que enxergar o mundo enquanto criança é valioso por si só. Meu Amigo Totoro nos reconecta com as lentes de interpretação dessa fase da vida, quando éramos movidos por um otimismo inabalável pelas violências do lado de fora, uma radicalidade inacessível quando somos derrubados pela amargura que é ser adulto.
Através das peripécias de Satsuki e Mei, Meu Amigo Totoro nos convida a ser crianças de novo e, dessa maneira, a pensar coletivamente uma sociedade melhor do que a que vivemos. Aqui, Miyazaki concebe sua utopia particular, antes de presenciar a crueldade humana revigorar-se repetidas vezes e, ao longo da sua carreira, tornar-se progressivamente mais pessimista. 37 anos depois, revisitar Totoro é um exercício de recordação do porquê fazemos Arte. É olhar para trás e nos lembrar do que trouxe-nos até aqui em primeiro lugar.
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