Se engana quem pensa que Nosferatu é apenas um dos personagens mais famosos do cinema. Antes da fama e dos louros, das adaptações e dos remakes, o vampiro careca de orelhas pontudas já era um sobrevivente. Se podemos assisti-lo reimaginado nas modernas telas de 2025 é porque algumas poucas cópias foram poupadas da fogueira que resultou de um processo de plágio do famoso livro de Bram Stoker, faliu o estúdio Prana-Film e exigiu o extermínio do vampiro de Max Schreck. Mais de cem anos depois, aqui estamos, pipoca em mãos, aguardando o início da projeção de Nosferatu e imaginando o que a mente de Robert Eggers pode ter trazido de novo à mitologia do Mal encarnado.
A história é mais ou menos a mesma: o agente imobiliário Thomas Hutter (Nicholas Hoult) precisa viajar a trabalho para fechar um contrato valioso com um conde riquíssimo que vive isolado nas montanhas da Transilvânia. Para isso, é necessário deixar sua esposa, a melancólica Ellen (Lily-Rose Depp), aos cuidados de um casal de amigos. O que Thomas não sabia era que a jovem com quem se casou já compartilhava de uma conexão sombria com aquele cujo nome é maldito para os locais: o vampiro milenar Conde Orlok (Bill Skarsgård).

Entre 62 próteses pelo corpo, a voz uma oitava mais baixa e muita maquiagem, o ator queridinho dos fãs de horror está irreconhecível. A caracterização de Skarsgård foi mantida em segredo até o último minuto, e, não à toa, o impacto de encontrar com Orlok a primeira vez ecoa pelos ossos. Thomas que o diga – os dois performam uma dança hipnótica, sustentada não apenas pelo talento da dupla, mas também pela ambientação à luz de velas do decrépito castelo e da forma como os poucos móveis estão distribuídos em um local tão amplo, característica que contribui para a sensação de encurralamento e ameaça.
Feito gato e rato, Orlok se move como um fantasma ao redor do pobre jovem de olhos arregalados para declarar sua dominância e, a partir daí, a narrativa não consegue fugir de sua influência. Do outro lado do continente, Ellen sente sua chegada, se contorce e alucina, tentando escapar do destino já selado e reprimir a excitação na beira do precipício. A sombra das garras compridas de Nosferatu a alcança e a percorre, decidida a libertá-la do conformismo mesmo que isso signifique seu próprio sacrifício.

Nesse sentido, Lily-Rose Depp é muito bem intencionada. A atriz tem disposição e apego ao papel, mas quando cessam os gritos e esperneios de Ellen, parece que Lily chega ao seu limite criativo. A performance até convence – mais em decorrência do acúmulo do todo ao seu redor –, mas perto de alguns colegas de elenco, como as frequentes interações com Emma Corrin e Willem Dafoe, o cerco fecha.
O relacionamento com Orlok é a cereja do bolo, claro. O imortal é convocado pelos desejos da jovem e se alimenta de sua psique em um jogo erótico de tentação e repulsa. Ellen reconhece a monstruosidade dentro de si, o clamor da própria sexualidade, e, enquanto com Thomas é incentivada a reprimi-la, Orlok a provoca. “Você não pertence aos vivos”, diz. As intenções do vampiro não são altruístas, mas movidas pelo egoísmo e pela perversidade da solidão eterna. Uma alma condenada ao Mal e do Mal uma escrava.

O mundo de Nosferatu é um mundo assombrado. Depois da destruição causada pela peste, os caixões tomam as ruas, as pessoas gemem nos cantos e o céu nublado se adensa. A loucura também se espalha como uma doença e os personagens que iniciaram o filme como bons e comedidos cidadãos desaguam num oceano de miséria e ratos (literalmente: foram cinco mil roedores vivos usados na produção). Essa construção imagética é fundamental para a estruturação da atmosfera adoecida; é uma viagem no tempo, sim, mas também uma viagem entre realidades.
E as quatro indicações que o filme recebeu ao Oscar 2025 mostram a força desse universo fantástico e morimbundo de Eggers: os vestuários exuberantes de Linda Muir, na categoria de Melhor Figurino; a composição estética de personagens quase-vivos de David White, Traci Loader e Suzanne Stokes-Munton, em Melhor Maquiagem e Penteados; os ambientes embebidos no Romantismo de Craig Lathrop e Beatrice Brentnerová, em Melhor Design de Produção; e a meia-luz latente de Jarin Blaschke, em Melhor Fotografia. Um time de peso que já havia trabalhado anteriormente com o diretor.
Robert Eggers, por sua vez, moldou o que viria a ser Nosferatu por pelo menos dez anos; Blaschke mesmo disse que recebeu o roteiro ainda em 2015. O diretor, também roteirista, é um fã do vampirão desde os 9 anos de idade, e se inspirou na versão de 1979 de Werner Herzog para tomar muitas das decisões do filme, mas sempre tendo como base o mundo originalmente criado por F. W. Murnau em 1922.

Entre as mudanças, a mais polêmica e divertida está no personagem-título; se a expectativa estava em ver outra versão da pele pálida, sem cabelos e com grandes dentes e orelhas, a caracterização de Bill Skarsgård surpreendeu com seu corpo em decomposição, carne à mostra, feridas purulentas e um grande bigode para completar. Ame ou odeie, o fato é que essa nova cara para o Conde Orlok é indiscutivelmente única e surpreendentemente assustadora. Se Eggers queria fazer com que os vampiros voltassem a ser criaturas temíveis, não é difícil dizer que ele conseguiu.
Assim, sufocada pela responsabilidade e pela culpa, Ellen se entrega ao seu algoz, mas também se entrega ao seu amante. O encontro é voraz, arrebatador e destrutivo para os dois, transformando o nobre sacrifício em um romance trágico e inebriante entre amores malditos. Se a jovem é o coração do filme de Eggers, o cineasta não se acanha em a apunhalar com uma estaca em seu clímax e desmanchar a aventura dos heroicos homens da narrativa. A salvação vem de outras mãos.
O sol nasce, as cinzas se espalham pelo vento. E o Nosferatu se foi.
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