No horizonte, bombas explodem e tremem edifícios inteiros. Além do cogumelo de fumaça atômica, não se enxerga mais nada. Foi assim que o mundo acabou em Fallout, adaptação dos gamese aposta do Prime Video na ficção científica. A série, que concorre a 16 prêmios no Emmy 2024, se afasta da maldição do gênero e se prova com uma história de perda da inocência.
Fugindo de tramas já apresentadas nos games, a série foi criada por Geneva Robertson-Dworet e Graham Wagner. Ela, com experiência nos roteiros de Tomb Raider e As Marvels, e ele, radicado na última temporada de The Office, de onde comandou um par de episódios. Da mistura, o humor prevalece, com toques de aventura e senso de construção de mundo.
Em Fallout, tudo é muito bem pensado e construído. Do mundo antes do apocalipse, onde Cooper Howard (Walton Goggins) faz bico de garoto-propaganda do governo, vemos uma idealização quarentista do futuro: os vestidos são laceados, as TVs, de tubo, e os costumes são mais antiquados do que deveriam. A esposa Barb (Frances Turner) é quem inicia ele no ramo corporativo Vault-Tec, e isso vem à alto custo.
Cerca de duzentos anos depois das explosões, Lucy MacLean (Ella Purnell) vive sã e salva no Vault 33, um cofre subterrâneo que almeja repopular a Terra – mas só daqui a algumas gerações. Lá, a harmonia rola solta: o pai Hank (Kyle MacLachlan) é o Overseer da coisa e o irmão Norm (Moises Arias, de Hannah Montana) treina para seguir seus passos.
Nem a morte da mãe, ocorrida há algum tempo, desanima o espírito da garota, que está prestes a se casar. Ela ainda não conhece o noivo, sabe-se apenas que vem do Vault 32 e tem boa contagem de esperma. No dia do casório, o jovem se revela inimigo, a vizinhança é atacada e o pai, raptado. Disposta a subir até a superfície e resgatá-lo, Lucy começa a entender que o mundo não é tão simples quanto foi pintado por terceiros.
No design de produção dos abrigos, a equipe técnica mistura o ar jocoso do Bom Lugar com o interior das naves de Jornada nas Estrelas. Esmero e cuidado escorrem da tela, que é povoada por figuras ora carismáticas (como os personagens de Zach Cherry e Dave Register), ora amedrontadoras (a chefona de Leslie Uggams e a loira-não-tão-inocente de Annabel O’Hagan).
No lado de fora, o deserto engoliu a Califórnia, e só restaram carcaças. Um vírus radioativo transforma alguns coitados em zumbis, chamados Ghouls, ou Necrófitos. O exército, lê-se A Irmandade, usa robôs avançados, os chamados Cavaleiros. E a Lei deu espaço para o caos: você pode caminhar até o comércio mais próximo, nesse caso comandado por uma sempre irreverente Dale Dickey, e perder a perna no processo.
O felizardo da vez é um médico, o doutor Wilzig (Michael Emerson), espécie de MacGuffinque caminha por todos os oito episódios. Igualmente caído na desilusão é Maximus (Aaron Moten), escudeiro de um dos Knights que acaba em posse nada legalizada da armadura. Sua jornada, encapsulada pelo talento do jovem ator, lembra muito a gênese do que Star Wars inicialmente planejava com Finn em O Despertar da Força.
Para a sorte de quem assiste, o arco de Maximus é satisfatório e tem para onde correr, tutelado pela produção executiva de Jonathan Nolan e Lisa Joy. Dupla que aprendeu o melhor e o pior do sci-fi de prestígio com Westworld, e volta ao ringue mais paciente e corajosa. Entre o passado e o presente, a série brinca com evolução e caráter. Se Lucy começa sua odisseia com olhos de filhote e atitude educada, ela precisa conhecer o pior do homem – e dos Ghouls – para entender o mundo.
No papel sem nome mas muito estilo, Walton Goggins recria o esboço do vaqueiro norte-americano, louvado e desmistificado em anos de faroestes revisionistas, dançando conforme a música. Ele é violento, bocarrudo, taciturno e desleal. Mas não sem reservar certa gentileza e camaradagem com aqueles que cruza. É, de fato, um tipo de vilão que funciona às mil maravilhas pela força e entrega do ator, e pela jornada dupla. Como Howard, Goggins é benévolo, e espelha a antítese no Ghoul.
Abraçada pela Academia, Fallout arrancou 16 indicações ao Emmy 2024, incluindo corridas grandes, como Melhor Drama, Ator para Goggins e Roteiro, para o episódio inicial. Na lista técnica, gabaritou tudo que se espera de uma ficção científica com orçamento de gente grande: de Montagem, Som, Dublês, Maquiagem, Efeitos Visuais, Figurino, Design e Trilha de Abertura, foi reconhecida e valorizada.
Enquanto a Televisão abre suas margens para mais e mais produtos fora da caixinha do drama de palácio ou da câmara de melancolia, Fallout se sobressai por suas características primordiais: espelhar a crise climática atual com um futuro hipotético e não tão desvairado. Alegrando tanto os aficionados pelos jogos quanto aqueles que sequer tocaram em um controle, a emancipação de Lucy está só começando – e não poderia ser mais misteriosa, instigante e deliciosa de acompanhar.
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