Mountainhead captura a ansiedade sobre bilionários messiânicos

Quatro bilionários entram num bunker: eles prometem IA, vida eterna, realidade virtual e o último resolve no braço — e chamam tudo isso de visão

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Entre o fim melancólico de Succession e a estreia em longas-metragens com Mountainhead, Jesse Armstrong troca o tabuleiro corporativo da mídia pelo bunker gelado da elite tecnológica. Aqui, o riso é mais seco e o horror é tanto conceitual quanto palpável. Filmado e lançado em seis meses pela HBO Max, o longa foi indicado ao Emmy 2025 na categoria de Filme para a TV e assume sua própria urgência como gesto político e satírico. Não por acaso, Armstrong reencaixa esse pânico numa linhagem que vai do existencialismo sintético de Blade Runner ao ceticismo de Matrix.

É impossível dissociar a escolha de Armstrong da época em que vivemos. Um mundo saturado de deepfakes, onde CEOs falam em colonizar Marte e fazer upload da mente para a nuvem com a mesma naturalidade que pedem um latte. A estreia na direção é menos um exercício de estilo e mais um exame clínico da tecnocracia, feito com câmeras instáveis, zooms intrusivos e um senso de proximidade desconfortável que nos deixa como um algoritmo de vigilância.

Com 2.000 m² e uma gôndola particular, a mansão de Park City foi descrita pelo The New York Times como um chalé de esqui encomendado por Tony Stark (Foto: HBO Max)

O filme se passa quase inteiramente na mansão de Souper, um bunker de vidro e concreto onde quatro bilionários da tecnologia debatem, barganham e tentam justificar moralmente o caos que eles próprios criaram. É um bottle movie que transforma a limitação espacial em instrumento narrativo em que as paredes e janelas panorâmicas não abrem para o mundo, mas o enquadram como um objeto distante, sem cheiro e sem calor. A arquitetura é também engenharia de afetos, a neve do lado de fora é emocionalmente estéril e governa aquelas mentes e corações.

A direção de arte entrega interiores minimalistas e sem alma, roupas de luxo silencioso e paisagens enquadradas como telas de bloqueio. É o modernismo estéril elevado a manifesto ideológico. Eliminar o supérfluo até eliminar a humanidade. Se Blade Runner tingia a angústia de néon e chuva, Mountainhead a refrigera em branco e vidro; se Neo Genesis Evangelion fazia do subsolo um útero tecnológico, aqui o abrigo é vitrine. Nicholas Britell reforça essa desolação com uma trilha que mistura cordas dissonantes e sintetizadores graves, sem espaço para emoção. É o som de um sistema que funciona perfeitamente para quem está dentro e destrutivamente para todo o resto.

Da esquerda para a direita: Cory Michael Smith (Venis Parish), Steve Carell (Randall Garrett), Ramy Youssef (Jeff Abredazi) e Jason Schwartzman (Hugo “Souper” Van Yalk) [Foto: HBO Max]

Venis Parish é o visionário ambicioso, que trata a ideia de aprimoramento humano com tecnologia (pós-humanismo) como se fosse um novo produto a ser lançado no mercado. Randall Garrett é o mais velho do grupo, que age como uma figura paterna, mas está mais preocupado com seu medo pessoal da morte do que com qualquer crise nos negócios. Jeff Abredazi é o novato com um resto de bússola moral, mas que é esperto o suficiente para usar sua aparência de ética para ganho próprio. E Hugo Souper Van Yalk é um carente desesperado para ser aceito por ser o mais pobre da turma, com só 500 milhões na conta. 

Essa coreografia de egos inseguros performa imitações, indiretas, diretas, tudo enquanto se aliam conforme o lucro exige, mas não compartilham nada que possa ser chamado de afeto. Essa ausência é deliberada. Armstrong retira qualquer possibilidade de identificação emocional para expor a frieza maquinal que define a elite tecnológica. Quando a trama escala para uma tentativa de homicídio caricata — com direito a gasolina empurrada com um rodo — a metáfora se fecha: deuses digitais são, no mundo físico, tão abaláveis quanto qualquer um, lembrando incidentes no mínimo ridículos do Vale do Silício.

Steve Carell saiu de The Office para arcos dramáticos em filmes como Foxcatcher e Beautiful Boy (Foto: HBO Max)

O centro da crise é a Traam, uma IA capaz de gerar deepfakes quase indetectáveis, espalhando desinformação até que a própria ideia de verdade se desintegre. O colapso não vem com explosões, mas como notificações irritantes de iPhones. Venis, impassível, chama o caos de pequenos contratempos e compara o pânico global ao susto dos primeiros espectadores de cinema. Em termos de imaginário, Armstrong nos joga no deserto do real de Matrix. Quando todo mundo pode editar o mundo, a realidade vira interface.

Randall é a linha direta com o transumanismo. O doente terminal vê no upload de consciência não um ideal coletivo, mas um salvo-conduto pessoal para escapar da condição humana. A ambição lembra o projeto de instrumentalidade de Evangelion, a dissolução dos contornos individuais em nome de uma transcendência que promete cura às feridas do eu. Aqui, privatizada. E ainda encontra um eco em Pantheon, onde o upgrade da mente vira ativo corporativo. Venis é seu cúmplice filosófico, defendendo o longoprazismo como justificativa para ignorar o presente em nome de um futuro hipotético — a pílula vermelha.

Ao contrário de outras obras eat the rich como O Menu, Triângulo da Tristeza e Parasita, não há punição final nem retribuição moral. Depois da violência, o grupo recalibra seus acordos, exclui o que é obsoleto e segue mais forte. É a vitória da justiça e da otimização sobre a ética. Em vez da bala de Matrix ou do lampejo de empatia que por vezes atravessa os replicantes, Armstrong mantém tudo no terreno do A/B test: se dói, versiona-se; se pega mal, pivota-se. Resta saber se o diretor manterá sua prateleira de Emmys atualizada a cada ano, ou se os concorrentes de outros streamings vão levar essa.

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