Monstro: A História de Ed Gein faz mea culpa delirante

Mais disposta a moldar os fatos e rimar ficção com crime real, terceira temporada da antologia é carregada pelo trabalho de atuação

min de leitura

O notório Ed Gein é protagonista da terceira temporada da antologia Monstro, projeto nascido da junção entre Netflix e a companhia de Ryan Murphy. O superprodutor, porém, assina apenas a produção executiva dos episódios da vez, deixando criação, roteiro e direção à cargo de Ian Brennan, parceiro de longa data que parece enfim realizar seu projeto do coração.

Charlie Hunnam encarna o assassino, numa interpretação de muita contenção e economia, apostando na voz infantil e na postura que verte entre o frágil e o bruto. Diferente das temporadas anteriores, a terceira vai além dos casos do protagonista e costura toda uma retórica histórica e poética. Gein inspirou a criação de grandes vilões da ficção, e Brennan não deixa passar batido o legado do homem.

Ao contrário do que muitos acreditam, Ed Gein não foi um serial killer, tendo sido condenado por apenas um assassinato e suspeito da morte de seu irmão; a próxima temporada voltará ao arquétipo ao acompanhar os crimes de Lizzie Borden (Foto: Netflix)

Do balaio, a produção delira com ecos em Hollywood e passeia até a Alemanha Nazista para encontrar a possível inspiração de Gein. É tudo macabro e bastante trágico, como a audiência acostumou-se ao assistir as diversas criações de Murphy e seus parceiros. Na pele de Ilse Koch, Vicky Krieps protagoniza histórias em quadrinhos que Ed lia e se excitava, pegando também ideias de como diversificar suas ações.

A câmera é taciturna no registro dos crimes do assassino, no jogo de luz e sombra que envolveu sua vida inteira; da mãe Augusta (Laurie Metcalf), guarda rancor, trauma e a devoção que o guia para os túmulos, em busca de partes do corpo para construir seus “trajes”. Com a namorada Adeline (Suzanna Son), Ed ganha uma espectadora e entusiasta, na maior das liberdades artísticas de Monstro.

 A direção é dividida entre Max Winkler e Brennan, sem o envolvimento de cineastas de renome, como Gregg Araki e Jennifer Lynch na temporada de Dahmer e Michael Uppendahl na dos Irmãos Menendez (Foto: Netflix)

Ao contrário dos crimes de Jeffrey Dahmer ou do caso midiático envolvendo os Irmãos Menendez, o material-base de Gein é ralo e não renderia um drama de tantos episódios e ganchos. A solução é encaixar, temporalmente, figuras como Alfred Hitchcock (Tom Hollander), Alma Reville (Olivia Williams), Anthony Perkins (Joey Pollari) e Tobe Hooper (Will Brill), criadores e criaturas nascidas do embrião de crueldade e desumanização de Gein.

Dos bastidores de Psicose, com direito a refilmagem do assassinato no chuveiro, a série entrelaça as personas solitárias de Gein e Perkins, este que sofreu com a homofobia da indústria e passou por todo tipo de experimento a fim de curar sua “preferência” – Mimi Kennedy interpreta uma psicologa que aproveita-se da fragilidade do ator para disseminar o ódio aos gays. Hitchcock, na atuação carregada que Hollander demonstrou dominar em Feud, se delicia com a catarse coletiva de um país inapto a frequentar o cinema e ver sangue jorrando.

Alfred Hitchcock: Nosso público vive em um mundo no qual Deus foi banido. Eles vivem com o medo diário da aniquilação nuclear. Já encararam, tremendo, com a mente entorpecida, a pura magnitude do mal que foi o Holocausto nazista. Viram, pela primeira vez na história, do que os seres humanos são capazes quando a bússola moral se perde. Frankenstein, O Fantasma da Ópera — isso não basta mais, Sr. Bloch. Nosso público encontrou um novo monstro. Esse monstro somos nós.

Vivida por Suzanna Son com a energia caótica de uma protagonista de American Horror Story, a personagem Adeline Watkins não possui laços românticos comprovados com Gein, e é mais uma das liberdades criativas da série (Foto: Netflix)

O comentário maior da terceira temporada de Monstro, e algo que os anos anteriores não tiveram a chance de debater, é o estado em fragmento que os americanos se encontravam no período que sucedeu a Segunda Guerra. As descobertas quanto aos campos de extermínio e os métodos de tortura e morte dos nazistas abriu um vácuo que só pôde ser preenchido com uma reflexão interna e obscura.

Gein, metido no interior de Wisconsin, não tinha ciência de seus atos, muito ao fato dos problemas de saúde mental que foram alimentados por um pai abusivo, uma mãe controladora e a total castração social que sofreu, além da morte do irmão e, posteriormente, de Augusta, um espectro que passou a habitar a imaginação do homem, ordenando que ele cavasse os túmulos, costurasse abajures com pele e, mais tarde, se deitasse com os cadáveres. Os relatos reais, porém, apontam que Gein morreu virgem.

Monstro: Ed Gein consegue encaixar “regravações” de grandes momentos do Cinema: o chuveiro de Psicose, o golpe de martelo de O Massacre da Serra Elétrica e as mariposas de Buffalo Bill em O Silêncio dos Inocentes (Foto: Netflix)

Hunnam interpreta Gein com segurança e muita atenção aos mínimos detalhes. O roteiro igualmente se beneficia de um olhar quase compassivo para com seu objeto de estudo, que é preso na metade da temporada e passa o restante da série trancafiado num hospital para pacientes loucos. Sua própria insanidade impedia-o de ficar encarcerado na cadeia, e tampouco de receber um veredito da Justiça.

Sentenciado a passar o resto da vida construindo cintos e ensinando métodos de costura para os demais pacientes, Ed Gein ainda enfrenta o diagnóstico que seu médico dita, mas ele ouve na voz de duas outras pessoas. Ilse, a general nazista, e Christine Jorgensen (Alanna Darby), artista da época que passou por cirurgia de redesegniação sexual e servia de ídolo e modelo de conduta para ele.

Não existem evidências que apontem para a relação de fã de Gein com Jorgensen, que fez fama nos Estados Unidos e foi amiga de Divine (Foto: Netflix)

É pela vertiginosa conversa entre a dupla, no episódio Radioamador, que Jorgensen conclui uma das questões mais longevas dos atos de Gein: ele não era transsexual, tampouco queria “ser mulher”. Nas cenas em que dança de lingerie e se masturba com a calcinha da mãe, Gein revela o lado ginéfilo de sua personalidade; de tanto ser capado por Augusta no que dizia respeito ao sexo com uma mulher, ele procurou a forma menos sexual de envolver-se com elas, isto é, cortar fora vulvas, vesti-las como uma fantasia que apagasse a chama de curiosidade e satisfação.

Há ainda, o lado gráfico dos crimes de Gein ao redor das personagens de Lesley Manville e de Addison Rae, vítimas que caem na escuridão histórica: a primeira, uma dona de loja que, na série, vive um caso sexual com o assassino; e a segunda, na pele de uma babá acometida pela poliomielite que o irrita de maneira mortal. A Netflix torce a faca no coração dos fãs de Mindhunter ao praticamente recriar o mote do drama nos episódios finais, quando Gein ajuda investigadores na prisão de Ted Bundy. A farsa do homem incompreendido que transformou-se em monstro aos olhos da sociedade acaba em visão miraculosa, no céu que marca o reencontro do filho com a mãe.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *