Maria Callas é muito, mas em vão

Nova cinebiografia de Pablo Larraín traz uma Angelina Jolie confortável em seu próprio desalento, e promete o retorno da atriz ao Oscar por sua interpretação da “maior cantora de ópera de todos os tempos”

min de leitura

Desde 2016, o diretor chileno Pablo Larraín dedica sua filmografia ao projeto de enquadrar algumas das personagens femininas mais relevantes do século 20. Muito bem inaugurado com Jackie, a série de cinebiografias encontra sucesso por trazer novas perspectivas ao gênero, inovando em recursos estéticos e buscando contemplar algumas lacunas da história de figuras já midiaticamente exploradas. Até o célebre Spencer (2021), o projeto apresentou uma escalada interessante e elevou as expectativas para o recente Maria – que, na verdade, apresenta os primeiros desgastes dos fantasiosos dramas reais de Larraín.

Com uma estreia aplaudida por quase 10 minutos no Festival de Veneza, o filme chega ao Brasil como destaque das seleções do Festival do Rio e da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. A comoção é inevitável: Maria se aloca em uma Angelina Jolie emocionalmente vulnerável nos últimos dias de vida da “maior cantora de ópera de todos os tempos”. Maria Callas, filha de imigrantes gregos nascida em Nova York no início dos anos 1920, viveu uma ascensão artística astronômica e um declínio avassalador, intermediado por problemas pessoais e doenças emocionais escancaradas aos olhos de um público implacável. 

Entre Spencer e Maria, Pablo Larraín deixou brevemente seu universo feminino e lançou o ainda imperfeito mas bem menos pretensioso O Conde, pela Netflix (Foto: Diamond)

No mundo perdido da artista, quem tenta manter alguma ordem e senso de realidade é o mordomo Ferruccio (Pierfrancesco Favino) e a governanta Bruna (Alba Rohrwacher). Sintomaticamente modulando os sentimentos de abandono e ressentimento familiar que acompanharam a protagonista ao longo de toda a sua vida, são eles que encontram o corpo de Maria Callas sem vida na sala do belo apartamento da cantora em Paris, já na primeira cena do filme. 

Dali em diante, somos levados à semana que antecede a morte da personagem. Os dias são repletos de devaneios e o objetivo de Pablo Larraín torna-se claro: perder o seu público entre a realidade e a ilusão que tortura e anestesia sua protagonista. Para isso, os recursos narrativos são alocados quase inteiramente na personagem de Mandrax (Kodi Smit-McPhee), um entrevistador que assume a identidade do sedativo hipnótico de Callas, enquanto acompanha seus últimos momentos e tenta compreender a biografia de sua arisca protagonista.

Assim, o filme assume um caráter metalinguístico. Muito do trabalho de Larraín com suas musas é lapidar suas faces mais íntimas e desconhecidas, missão traduzida pelos títulos de seus filmes. Mas entre observar Jacqueline Kennedy destituída do poder de primeira dama pelo infortúnio da viuvez, ou trazer a tona os dilemas e angústias de uma Princesa Diana no auge da rejeição à sua própria persona real, o ponto de convergência da vez é mais abstrato, e tanto o roteiro de Steven Knight como a interpretação de Jolie padecem na busca da Maria dentro de La Callas.

Pablo Larraín projeta todas as suas protagonistas ao Oscar e esse ano a expectativa é ainda maior para o prometido retorno de Angelina Jolie, 15 anos depois de sua última indicação por Changeling e 24 depois de sua vitória por Girl, Interrupted (Foto: Diamond)

O conforto que a atriz encontra na dor faz da protagonista uma diva decadente que saboreia o próprio sofrimento, como alguém que tem consciência da própria estagnação emocional em que se encontram os últimos dias de sua vida. Longe de ser passiva, ela escava suas próprias feridas e exaure o resto do filme numa montagem também prolixa. Mesmo as dublagens são comprometidas e tudo soa excessivamente dramatizado, criando um conflito central com a direção de Larraín, capaz de respeitar suas personagens ao ponto de não levá-las tão a sério quando oportuno.

Há, ainda, uma linha tênue entre o satírico e o caricato, que é responsável por orientar o trato do diretor com os seus personagens. Mas diante de uma protagonista alinhada à sua própria angústia, a identidade tragicômica e novelística de Larraín encontra seu ponto de apoio em seus preciosos coadjuvantes: Pierfrancesco Favino traz no mordomo Feruccio um poço de gentileza que constrange até mesmo a insanidade de Maria Callas, enquanto a governanta de Alba Rohrwacher é a mais afetada pela atmosfera emocional densa e complexa da artista.

Aos olhos da cinebiografia, o problema de Maria não é o desalento familiar, não é a solidão, muito menos a fama. Não é a saúde física, que a impede de cantar há muito anos, nem a psicológica, que a impede de estabelecer qualquer relação genuína com o mundo que a cerca, tão privilegiado em acessos e riquezas que ela mesma construiu. É tudo e nada, num universo cinematográfico que costuma ter como seus principais aliados o maximalismo e a abstração da fantasia. Infelizmente, há momentos em que nem o exagero e nem o vazio são capazes de satisfazer uma busca por sentido. Padecemos no paraíso quando tudo o que buscamos é humanidade – embora seja exatamente o que falte a ela e ao filme, essa é a única coisa que Maria Callas consegue nos dizer. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *