Jay Kelly escreve uma carta de rancor ao Cinema

Noah Baumbach fala de fama e arrependimento em dramédia da Netflix

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Homem de grandes gestos, o astro Jay Kelly (George Clooney) agora precisa se voltar às minúcias: os diversos takes da cena final de seu atual filme, ou a grande celebração que vai receber numa cidade europeia, ou ainda a passagem da filha mais nova do colégio à universidade. Com arrependimentos para dar e vender, ele sente-se estagnado.

É daí que parte a direção de Noah Baumbach, que escreve o roteiro ao lado de Emily Mortimer, e desfruta de uma atuação calibrada de Clooney, galã perene do Cinema que agora vive um protótipo de si mesmo. Ao lado de um inspirado Adam Sandler no papel do empresário Ron, Jay Kelly alça voo.

Após uma recepção morna em Veneza, Jay Kelly colecionou poucas indicações no Globo de Ouro e no Critics Choice (Foto: Netflix)

Falar da Sétima Arte e das cartas de amor a ela tornou-se um exercício enfadonho que por vezes rende um belo produto, e outras descamba num lambe-lambe sem pé nem cabeça. Jay Kelly recusa o discurso blasé de amor à arte para falar de remorso e de tudo que o ator abriu mão para tornar-se quem é.

As ex-esposas estão ausentes de cena, mas as filhas servem de alerta ambulante para as cicatrizes da infância de paternidade ausente. Riley Keough encarna a mais velha e mais bem-resolvida Jessica, contrapondo a juventude e a impulsividade de Grace Edwards, como Daisy, a futura universitária que guia o pai até os confins da Europa.

Noah Baumbach escreveu o roteiro da animação O Fantástico Sr. Raposo, personagem-título dublado por George Clooney (Foto: Netflix)

Do sorriso calculado ao discurso decorado, Clooney constrói uma frente de aparente previsibilidade para então deixar que seus olhos façam o trabalho árduo de traduzir o agridoce senso de dever cumprido. Baumbach, vindo das loucuras metafísicas de Ruído Branco e do conto de fadas humano de Barbie, aposta numa abordagem demasiada estilizada, com seu protagonista visitando memórias vívidas.

Dessa forma, ligações transformam-se em peças de teatro, lembranças dos vinte e poucos anos viram em encenações carregadas de nostalgia e de perjúrio. Quando um antigo colega de faculdade ressurge, Clooney precisa suar as aparências de dondoca e sangrar a rivalidade que o Timothy de Billy Crudup recauchuta desde que Jay lhe roubou o papel e a namorada.

Nina Gold e Douglas Aibel assinam a direção de elenco, escalando Sadie Sandler, Jamie Demetriou, Patsy Ferran, Alba Rohrwacher, Patrick Wilson, Stacy Keach, Jim Broadbent, Isla Fisher, Eve Hewson, Charlie Rowe e Louis Partridge (Foto: Netflix)

Nicholas Britell alcança o frenesi na trilha sonora, em composições carregadas de vibrações e suntuosas quebras de expectativa. Na câmera, o trabalho de Linus Sandgren é iluminado pelas ideias do diretor, penetrando o templo sagrado dos sets de gravação e da aura que esconde o fazer de um filme.

Todas minhas memórias são filmes, confessa Kelly, em uma das várias linhas pasteurizadas do roteiro, muito afeiçoado ao plástico em comparação ao cru e desnudo. Passeando por aeroportos, trens, vilarejos e salas de cinema, Clooney encontra uma porção de figuras importantes em sua formação, seja no passado como ator iniciante, seja no presente, com o público cativo que o ovaciona e aplaude qualquer gesto de mundanidade.

Jay Kelly encerra com uma montagem dos diversos papéis da carreira de Clooney, rasgando o véu entre ficção e realidade (Foto: Netflix)

Atrás, muito sombreado por uma vida de ligações e acordos, o personagem de Sandler murcha ao passo que entende sua posição servil e não necessariamente amistosa com o cliente, e tudo piora quando a família, e especialmente a esposa vivida por Greta Gerwig, expressa o tamanho do rombo que sua ausência gera na harmonia rotineira. A outra cabeça pensante da marca Jay Kelly abandona o barco quando pode, drenando de Laura Dern o cansaço que Sandman vai absorvendo até que o copo transborde.

Não há discussão mesquinha ou epifania cerebral que dê conta de apaziguar o urro íntimo de cada homem representado ali. Mas Baumbach, tão adepto a um Cinema de emoções travestidas de simplórias ações, transforma Jay e Ron em avatares de uma indústria que se encaminha para um precipício moral. Ao menos houve diversão e, por que não, algumas lágrimas; sem necessidade de repetições, o take atual é perfeito.

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