June Hayward sempre invejou a colega Athena Liu. Na faculdade, o incômodo nasceu do sucesso da outra, mas depois da publicação de seu livro de mega sucesso, a coisa escalonou. Athena tem tudo que falta em June: o brilho, a chama de inspiração e a ascendência asiática, que transformou-a em um token literário para o mercado.
Impostora: Yellowface, da escritora R.F. Kuang e traduzido por Yonghui Qio, brinca com a sátira num mordaz retrato dos privilégios e das mordomias que uma distinção de raça ou etnia coloca em cheque na carreira. Descontente, mas sem sair da cola da colega, June está presente no pior momento da vida de Athena, sua morte.
“Agora, era como se eu escrevesse por nós duas. Como se eu estivesse encarregada de levar seu legado adiante. Isso basta como justificativa para você? Ou ainda acha que sou uma ladra racista?”
O acidente prova-se ideal para que June surrupie o manuscrito de um novo livro de Liu, de que ela nunca mencionou em entrevistas ou mesmo para seu agente, e se aposse do material. Cru, embora alicerçado com o crivo de uma mente febril e borbulhante, o enredo é abraçado por June, que decide reescrever o necessário e publicá-lo sob sua autoria.
Muda a assinatura para o exótico e enigmático nome de Juniper Song, troca de editora e assina os maiores e mais extraordinários contratos. O dinheiro enche os bolsos, as bolsas e a consciência, já que algumas pulgas desatarão a incomodar seu sono. “A melhor maneira de esconder uma mentira é contar uma meia verdade”, define a narradora.
“E eu me pergunto se essa é a parte obscura de como o mercado editorial funciona: se os livros de tornam um sucesso estrondoso porque, em algum momento, todo mundo decidiu, sem motivo, que aquele seria o queridinho da vez”.
Com medo de ser descoberta e desmascarada, a personagem passeia pela loucura e pela devassidão da culpa, mostrando uma pessoa odiosa mas por quem, de modo involuntário, torcemos um pouquinho. Entre debates em eventos, observações ácidas sobre as redes sociais e os parâmetros do sucesso criativo, Yellowface acaba se rendendo a um jogo de gato e rato que esgota a criatividade original.
Menos inteligente do que pensa ser, o livro sofre da excitação precoce, que elenca momentos de vulnerabilidade e êxito de June, com os meses consumidos em poucas páginas, deixando as melhores situações presas nas entrelinhas. A metalinguística pegada humorística é um jeito de Kuang, que é chinesa e disse se basear em situações que vivenciou no mundo dos livros, driblar qualquer represália.

Vindo da publicação da trilogia da Guerra da Papoula e do calhamaço linguístico Babel, a escritora prova a versatilidade e aptidão para cortar sua arte em distintos sabores. Se Impostora deixa a vontade imperar, é só questão de marinar e esperar o tempero pegar – e aí, mais uma deliciosa e viciante refeição para seus assíduos e cronicamente online leitores.
“O que mais podemos querer, enquanto escritores, do que tal imortalidade? Afinal, fantasmas não querem ser lembrados?”
Deixe um comentário