Quem me conhece sabe que eu não sou uma pessoa muito religiosa. Fui criado por pais cristãos e tementes à Deus, mas que nunca me incentivaram a ir na igreja ou praticar os rituais da fé. Durante a vida, ficou cada vez mais difícil acreditar na presença do divino sem esses rituais, afinal a falta de prática leva ao esquecimento, tal como andar de bicicleta. No entanto, há uma rotina específica que ainda desperta o senso de um Poder Maior em mim, algo que sempre me faz sentir parte de algo além, incompreensível e familiar ao mesmo tempo, infinitamente poderoso em sua mundanidade: o Cinema.
Ir ao cinema é sem sombra de dúvidas um ritual. Você se junta à uma congregação de fiéis numa sala escura, reduzindo a percepção de seus sentidos até que na sua frente reste apenas um símbolo sagrado. Por duas ou três horas, a depender do pastor, você se senta lá e passa a acreditar em outro mundo, com outras pessoas resolvendo outros problemas, histórias às vezes tão distantes de você mesmo que seu propósito parece ser apenas o de simplesmente existir como elas mesmas. Você pode até aprender algo com elas, mas este não é o objetivo porque parte de sua santidade está justamente no seu mistério. Eu não sei como encaixar trailers nessa metáfora, mas você entendeu o meu ponto. Claro que nem todos vão partilhar dessa visão, mas é o que eu sempre sinto quando estou prestes a comprar o meu ingresso na bilheteria, pensando o quanto vale a pena gastar numa pipoca superfaturada e um refrigerante geladinho.
Quando eu entrei na sala de cinema em 23 de maio de 2024, era difícil dizer para qual experiência eu estava esperando. Afinal, o que seria Furiosa: Uma Saga Mad Max? Uma sequência disfarçada para o absolutamente perfeito Mad Max: Estrada da Fúria? Ou uma divagação sobre histórias e o nosso lugar nelas como em Era Uma Vez Um Gênio, filme anterior do cineasta australiano George Miller? Ou quem sabe seria apenas um prequel desnecessário, desenhado para se escorar na familiaridade do público com a personagem icônica interpretada por Charlize Theron? Ao invés dessas coisas, o que eu encontrei foi um artefato estranho, um ícone religioso que me estranhou e ao mesmo tempo me fascinou, fazendo eu novamente me envolver no mistério do que as histórias contadas no Cinema representam para mim e para aqueles que transformam este templo em sua fé.
Aqueles que esperavam um simples Estrada da Fúria 2 iriam se decepcionar logo de cara. Miller usa nossa familiaridade com o filme anterior e nos joga diretamente no ponto de virada da história, mostrando uma jovem Furiosa (Alyna Browne) sendo raptada de seu lar verdejante por uma horda de motociclistas selvagens. Apesar de ecoar a abdução de Max (Tom Hardy) pelos Garotos de Guerra de Immortan Joe, é uma completa inversão do ritmo e do propósito da cena. Enquanto o prólogo ensandecido de Estrada da Fúria exibe todo o potencial da edição primorosa de Margaret Sixel (que lhe renderia o Oscar em 2016), Furiosa joga por regras bem diferentes: a caçada de Mary Jabassa (Charlee Fraser) por sua filha é um esforço metódico e paciente, no qual a futilidade da empreitada é ocultada pelo repertório emocional que Fraser e Browne conseguem encaixar em suas respectivas personagens mesmo partilhando pouquíssimas cenas. O apelo desesperado que a mãe faz à sua filha em seus momentos finais representa o fio condutor da trama, levando Furiosa aos extremos do Deserto e de si mesma.
É também aí que conhecemos o vilão Dementus, líder de uma horda de motoqueiros vândalos e interpretado por um Chris Hemsworth que parece ferozmente extasiado pela oportunidade de atuar como um personagem de verdade. Inicialmente ele invoca a imagem clássica de um antagonista de Mad Max, representando a loucura e selvageria que acometeram os habitantes do mundo após o colapso da civilização. No entanto, conforme mais de sua história é revelada, ele acaba se tornando um espelho sombrio para seus protagonistas, um futuro terrível do qual eles tentam desesperadamente escapar. A braçadeira que ele usa na perna direita é um toque especialmente sutil do figurino que imediatamente remete à ferida de Max Rockatansky e o significado por trás dela.
Contrariando a estrutura quadrática de Estrada da Fúria, Miller dá à Furiosa cinco capítulos divididos claramente entre si, catalogando mais de uma década da vida da protagonista e sua transição gradual de vítima a sobrevivente. É um ritmo que parece até alienígena em um filme de Mad Max, em que a trama geralmente gira ao redor de alguns poucos dias em que a maioria dos acontecimentos explosivos ocorre em rápida sucessão, mas também é uma mudança que nos obriga a olhar para o longa de forma diferente: de repente, estamos vendo algo muito maior do que apenas um filme de franquia, mas uma verdadeira odisseia do futuro nem tão longínquo, em que nenhum recurso se tornou tão escasso quanto a esperança.
Furiosa possui uma raiz mítica no roteiro de Miller e Nico Lathouris, apresentando a vida conturbada de sua protagonista menos como uma série de histórias interligadas por sua vingança contra Dementus, mas sim como uma lenda singular sobre humanidade e o fim do mundo, contada ao redor de uma fogueira por um dos últimos contadores de história conforme as estrelas no céu aparecem. Toda história pós-apocalíptica invariavelmente se torna uma história sobre o fim de nós mesmos e o que acontece se persistimos depois desse final, e em Furiosa esse conflito é uma inversão dos papeis do filme anterior: uma Furiosa perdida é obrigada a se encontrar no mundo com a ajuda de poucos. Ela está, literal e figurativamente, no lugar que Max ocupava em Estrada da Fúria, tendo que reencontrar a si mesma ao longo do caminho.
A britânica Anya Taylor-Joy é quem assume a personagem nessa fase. Ela faz uso feroz e clínico de seus grandes olhos castanhos e do resto de sua fisicalidade para comunicar o que palavras não são capazes. O número limitado de diálogos resgata o mesmo sentimento minimalista de Mad Max 2: A Caçada Continua, filme em que o protagonista interpretado por Mel Gibson possuía cerca de 40 falas. Fica imediatamente claro o porquê dos realizadores terem optado por selecionar uma nova atriz para o papel ao invés de utilizar efeitos especiais para rejuvenescer Charlize Theron. Além do benefício óbvio de poder utilizar os talentos de uma nova artista, a escolha fortalece a temática de que tudo não passa de uma história, e é justamente aí que jaz o seu poder.
Em uma época em que o Cinema blockbuster parece fadado a apenas encenar um realismo mentiroso, Furiosa surge como um oásis no deserto e nos lembra de que tudo são histórias e que histórias são tudo. Para Miller, o Cinema é apenas mais um dos jeitos que achamos de dar continuidade à essa que é a maior das tradições humanas, um instinto multi-geracional de compartilhar experiências através de inúmeras linguagens, seja pelo prazer que o ato de contar nos causa ou pelo puro prazer de ouvir e imaginar. Talvez seja por isso que seus filmes tão frequentemente parecem ser tão potentes em seu storytelling, já que vemos inúmeras histórias sendo contadas simultaneamente, seja através do roteiro, da direção de arte ou da trilha sonora. Cada aspecto salta através da tela quase que com vida própria, criando um efeito eletrizante de que aquela é a única história que vale a pena ser contada, porque nela todas as outras acontecem.
Contrariando sua protagonista, Dementus é um dos personagens mais falastrões da série, não perdendo uma oportunidade para divagar sobre seus motivos e desviar a culpa de suas ações. Quando conhece Immortan Joe (Lachy Hulme), no entanto, vemos que Dementus não passa de um aspirante à déspota, e que a falta da fagulha capaz de incendiar um fervor religioso em seus seguidores o devora por dentro. Até mesmo dentro de seu próprio grupo ele luta pelo controle das diferentes gangues e seus diferentes métodos de loucura. É outro testamento da linguagem visual do filme a maioria dessas informações serem confiadas à expressão dos atores e aos seus figurinos: em Furiosa não há tempo de exposição que não esteja intimamente ligado aos movimentos interiores de seus personagens.
Assim como Estrada da Fúria, Furiosa é composto por uma edição primorosa que favorece o movimento físico e emocional das personagens em cena, usando tanto artifícios digitais quanto cenários físicos para nos aproximar do chicote de seus cortes e da agonia de seus takes contínuos. Quase uma década depois, Margaret Sixel mostra porque levou aquele Oscar e porque merece mais um. Essa dinamicidade, mesmo em um filme com ritmo mais lento, contribui para que até os pequenos momentos desses personagens entrem em foco e nos mostram nuances de quem eles são. Assistir esses filmes é como ver um milagre tomando forma, um matrimônio tão belo entre som e imagem que te faz reavaliar as possibilidades de seu meio. Eles são tão imediatamente parte do cânone do Cinema que é difícil não se sentir grato por eles simplesmente serem capazes de existir no cenário atual da indústria.
A trilha sonora de Junkie XL, que também compôs a de Estrada da Fúria, é outro dos elementos subversivos do filme, preenchendo o vazio do deserto com sons solitários e instrumentos de sopro misturados com distorções eletrônicas. Refletindo o isolamento de Furiosa ao longo da trama, é um silêncio espectral que só algumas vezes é quebrado por faixas operáticas e que resgatam algumas das principais faixas do filme anterior, particularmente no que se refere aos seus antagonistas. Assim como a edição do longa, é uma trilha sonora que tem o desafio de colocar em evidência as muitas sequências de ação estelares do filme enquanto dá espaço suficiente para que nossa atenção seja lentamente preenchida pela totalidade de seus detalhes trabalhando em conjunto.
É muito fácil reduzir histórias de vingança a uma coisa ou outra, histórias sobre como precisamos cavar duas covas ou sobre retribuição semi-divina: ou a vingança vale a pena ou não. Entre esse binário encontramos as mais diversas facetas da condição humana, então não é uma surpresa que essas tramas atraiam a atenção de contadores de histórias ao longo dos séculos. De O Conde de Monte Cristo até The Last of Us Part II, parece que nós nunca vamos deixar de nos fascinar pelas profundezas de nossos heróis e sua eventual ascensão mitológica. Furiosa: Uma Saga Mad Max com certeza bebe de diversas dessas fontes, tanto na construção de sua narrativa quanto na de seus personagens, mas George Miller usa seu status de prequel como oportunidade para tecer algo que vai além.
Sabemos como a história de Furiosa termina, sim, mas mais importante: nós sabemos como ela começa. O verdadeiro desafio do filme nunca foi nos contar como a personagem se tornou a heroína de ação da década em Estrada da Fúria, mas em nos fazer ver como ela reteve a esperança que lhe foi tirada tanto tempo atrás e as razões que lhe levaram não apenas à sobreviver, mas a ajudar outros em seu caminho para o Lugar Verde. No que é talvez a aposta mais ousada do longa, Miller nos apresenta ao Pretor Jack (Tom Burke), o motorista mais capaz ao serviço de Immortan Joe, com quem Furiosa eventualmente desenvolve uma dinâmica de companheirismo mútuo e até mesmo o indício de algo maior. Se Dementus age como o espelho sombrio da figura de Max na trama, Jack é o seu protótipo, até mesmo fisicamente lembrando o personagem de Gibson e Hardy.
O que poderia ter sido uma tentativa mal-pensada de inserir um romance passageiro na história se torna uma das âncoras emocionais da trama, dando tanto à Furiosa quanto ao mundo que a cerca um semblante de esperança na paisagem distorcida. O destino de Jack se torna o ponto de inflexão da personagem, entre o que ela era e o que ela irá se tornar. Onde um diretor menos experiente teria tentado encaixar um torture porn suave, Miller e Taylor-Joy entregam uma das metamorfoses cinematográficas mais memoráveis da história recente, ecoando tanto o passado quanto o futuro da personagem. Em sua última cena, eu tive que limpar meus ouvidos para me certificar de que eu não estava ouvindo a voz de Charlize Theron no cinema.
George Miller constrói a odisseia de Furiosa com fogo e ferro, executando algumas das cenas de ação mais elaboradas de sua carreira, carregadas não só pelos movimentos fortes e pronunciados dos personagens, mas por sua própria ânsia por fazer o máximo possível com o material que lhe é dado. Em uma entrevista para a Vanity Fair em conjunto com o duo The Daniels, o diretor e roteirista Rian Johnson elaborou que, para ele, cada filme que havia feito era como um “navio pirata”, no sentido de que em todos eles havia a perspectiva de que aquele poderia ser o último filme que ele faria: não faria sentido tentar zarpar sem carregar o máximo de coisas que conseguisse. Eu obviamente não tenho como saber se Miller partilha dessa filosofia, mas é difícil para mim não sentir que toda vez que vejo um filme dele, há um pirata idoso em algum lugar da Austrália, rindo por ter se safado mais uma vez depois de ter queimado seu navio no grande oceano, pronto para planejar seu próximo golpe.
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