Em Triste tigre, a francesa Neige Sinno observa os destroços da criança que foi

Em livro confessional dos estupros sofridos na infância, autora busca razão coletiva em trauma individual

min de leitura

A violência sexual que Neige Sinno sofreu dos sete aos quartoze anos não vai embora com as palavras que transcreve em Triste tigre. Pelo contrário, o ato de lembrar, contar e passar para frente é parte do doloroso processo que toda vítima de estupro passa. O agressor é seu padrasto, sentenciado a nove anos de prisão e que hoje está de volta à liberdade e ao carinho de uma nova família.

Os crimes aconteceram entre o fim dos anos 80 e o começo da década seguinte, quando Neige manteve caladas as queixas e as denúncias, com medo de ruir a estrutura nuclear ou de que, absorto em raiva, o homem atacasse sua irmã ou seus meio-irmãos, filhos dele com a mãe de Neige.

“Como um Minotauro todo-poderoso, era preciso alimentá-lo, bajulá-lo, satisfazer todos os seus desejos, e assim poderíamos ter a esperança de que sua raiva não fosse despejada sobre nós”.

Vencedor dos prêmios Femina, Goncourt des Lycéens, Strega Europeo, Le Monde, Blù Jean-Marc Roberts, Les Inrockuptibles e Libraires du Québec, o livro captura o ar pueril e autobiográfico de alguém em conflito com a própria posição presente. A autora não quer ser limitada ao passado, nem quer esquecer ou apagar a História.

Decidiu ter um julgamento público para que, à vista de toda sociedade, o crime oculto fosse examinado e confrontado. A leitura não é de fácil absorção, mas Neige faz um bem bolado temporal que equipara a mulher que escreve, olhando para trás, com a menina que passou anos entre porões, colchões sujos e a eterna promessa de silêncio.

As descrições não são gráficas, contudo não escondem os atos. Sinno dialoga com a cultura popular que há muito idealiza as histórias de abuso, citando desde Lolita a exemplos reais dos tribunais de justiça. Há um senso de ciência e atualidade no relato da francesa, que a todo momento é bombardeada com questões internas e externas ao próprio ciclo de existência.

“Por que escrevo este livro? Porque eu posso.”

A tradução de Triste tigre é de Mariana Delfini (Foto: Reprodução)

O título extrai sua conotação de outra obra sobre temas similares, Tigre tigre, de Margaux Fragoso, que acendeu em Sinno um alerta sobre a percepção pública e como a arte – e a Literatura, enxergam o estupro e o incesto. Na capa da edição brasileira, desenhada em tons terrosos, uma garotinha segura um cão indefeso, na pose que remete a obra Dama com Arminho, com uma doninha no lugar do cachorro.

O tigre é o predador, e também é a presa. A hipocrisia de uma abordagem preto no branco do tema do abuso é contornada por Neige, numa prosa de divagações e desvios que sempre retornam ao ponto de partida: o padrasto. Aquele ser vil, inescrupuloso, sádico e que confessou todos os crimes.

Para ele, não houve gravidade. Para o resto da cidade interiorana onde nasceu e cresceu, idem. Neige até denuncia a própria família, que continua em contato com o homem mesmo depois da condenação e da sentença. Não foi com eles que ele fez aquelas coisas, ela percebe. E se frustra. E se culpa. E sente raiva. E o processo recomeça.

“Considerar o testemunho subliteratura é uma postura de elitismo cultural, mas por que não praticar um pouco de elitismo cultural se isso ajuda a me proteger?” 

Destaque na programação da Flip 2025, Neige Sinno publica um estilo de memória em tom confessional que também cede braços ao trabalho de Annie Ernaux. Não por acaso a Nobel tem uma citação estampada na capa da edição da Amarcord, selo da Record que domina o mercado e sua fatia de leitores ávidos por vozes dissidentes em contextos de impacto e reconexão. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *