É sempre a hora da nossa morte amém: as memórias e mazelas da velhice perpétua

Livro mistura realidades e lembranças em narrativa cheia de desculpas

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Não tem um dia que passe sem Aurora lembrar e lamentar a morte da filha Cecília. As memórias são dolorosas, preenchendo boa parte da rotina da idosa, que foi encontrada sozinha, com uma coleira na mão e clamando pelo retorno da garota.

Sua morte foi brutal e repentina: a queda do avião não deixou sobreviventes. Ou melhor, aquela picada de cobra levou o veneno rapidamente ao coração, que parou de imediato. Ou ainda, a infecção pela ferida com prego acabou com a saúde da garotinha. Aurora não tem certeza, e a assistente social Rosa atende-a no asilo provisório quase todos os dias.

“[…] porque houve um período em que fui mais sozinha do que uma pessoa pode ser, mas ninguém sabia, porque a solidão dos outros é uma coisa que a gente lembra só de vez em quando e logo joga para longe da cabeça antes que se instale a culpa, porque é muito mais fácil vir a culpa do que uma visita […]”

É sempre a hora da nossa amém devolve Mariana Salomão Carrara ao universo lírico que já passeou pela infância e agora chega à velhice. Em capítulos que alternam as memórias dúbias de Aurora, a escritora brinca com as possibilidades e arremata com convicções poderosíssimas.

Culpada por não ser mãe, culpada por ter se escondido e se acovardado na Ditadura e, principalmente, culpada por não se lembrar com exatidão da vida e da família, Aurora é uma narradora de quem devemos desconfiar, por mais que algumas constantes se mostrem presentes em diversas versões de sua história.

“Acabou que foi para o cachorro que eu tive de explicar o desaparecimento total da criança da casa, que não enterramos no jardim e então Perdoai nunca pôde entender o abandono”.

O casamento mal fadado com Antônio, funcionário do necrotério da cidade, assim como o fusca que dirigiam para cima e para baixo, sem filhos para cuidar, são parte do cenário fixo. Mesmo caso da mãe de Aurora, uma mulher profundamente deprimida que deixava os cuidados caseiros à cargo da pequena. 

Apenas Cecília se duplica. Às vezes, é a filha que morreu antes de completar a idade perfeita (40 anos, como Aurora define vez após vez); em outras, é a amiga de infância com quem compartilhou as meninices e a chegada à vida adulta. Não importa a encarnação, é certo que Cecília fez de Aurora uma pessoa feliz, triste, miserável e terrivelmente esperançosa.

“Vou dizer à Rosa que é por isso que demoro a lembrar a minha vida, não foi revelada, fui buscar minhas fotos e o rapaz falou que o filme todo queimou, ou então não sei, ficaram todas borradas, minha vida foi um grande dedo na frente da lente, o fotógrafo dizia Sorriam, mas sempre faltava alguém na foto, e sempre o dedo na frente”.

Não cabe à Carrara a função de desvendar ou investigar a vida de sua protagonista, essa tarefa fica aos cuidados de Rosa, a assistente social que vai atrás dos trâmites e dos documentos em busca da família perdida de Aurora. Para a senhora, e para quem lê, a jornada é formada por relatos difusos, informações cruzadas, e poucas certezas.

Os cães, chamados de Ofendido e Perdoai, aparecem como mascotes do passado – e levam Aurora aos mais diversos cenários. De maternidades cheias de gente à acidentes fatais e sangrentos, Mariana Salomão Carrara viaja pelas vidas de uma pessoa incerta de quem foi. A única contribuição certa está numa frase que ouviu por engano e que guiou suas decisões, seus medos e seus fantasmas. A hora da oração que definia um destino macabro: é sempre a hora da nossa morte amém. Então devemos nos preparar para sua chegada. 

“Eu não sei, Rosa, o que você tem para descobrir da minha vida, mas certamente se eu pudesse mesmo escolher eu queria um futuro, não um passado, é insuportável deixar de existir, e não há a menor possibilidade de que você me comunique que descobriu isto, que não vou morrer jamais”.

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