Del Toro extirpa Frankenstein de calor e urgência

Projeto do coração do diretor mexicano na Netflix tem todos os ingredientes para tornar-se clássico – menos o mais importante

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No palco do BAFTA, no discurso que fazia ao receber o prêmio de Melhor Direção por A Forma da Água, Guillermo del Toro dedicou parte de sua fala à memória de Mary Shelley, autora de Frankenstein. A aguardada e querida adaptação de O Prometeu Moderno pelo cineasta mexicano é um projeto do coração – vivendo e morrendo por sua visão.

Original da Netflix, o filme ganhou projeção limitada nos cinemas e uma estreia acalorada em festivais, antes de chegar ao catálogo do streaming, sofrendo dos males recorrentes de seus semelhantes: a compressão da imagem que empobrece o olhar caridoso e o vislumbre que del Toro dedica aos monstros da história.

Depois de dirigir sua versão de Pinóquio, o cineasta decidiu contar a história de Frankenstein, no que ele considera “dois lados do mesmo conceito” (Foto: Netflix)

Um desbunde técnico, Frankenstein é construído pelos sets macabros de Tamara Deverell e pelos figurinos avantajados e poéticos de Kate Hawley. Na trilha sonora, Alexandre Desplat repete a parceria com o diretor sem cair nas mesmices, brindando euforia e horror em medidas covalentes. 

A internet registra que Frankenstein foi adaptado, direta ou indiretamente, centenas de vezes. O exemplo clássico é o eternizado por James Whale e Boris Karloff em 1931, num conto de terror e pertencimento que, de primeira, desvendou parte da mácula e do mistério das palavras de Shelley. O tempo fez questão de proliferar sua influência, em filmes como The Rocky Horror Picture Show e Pobres Criaturas, bebendo goles cavalares do gótico processo de morte e renascimento.

A falha da paternidade guia os erros e acertos de Victor – que foi ensinado a odiar pelo pai, na segunda vez que Charles Dance vive Leopold Frankenstein na carreira (Foto: Netflix)

Desta vez, Oscar Isaac encarna as perversões de Victor num rompante de adrenalina e loucura, muito enviesados pela influência paterna (na austera interpretação de Charles Dance) e a dependência materna (na primeira de duas atuações de Mia Goth). O leite que bebe ao longo de sua vida marca a correlação mais direta de sua infância perene, e mesmo quando ele próprio procria, o homem se mostra um reflexo do patriarca que também o decepcionou.

Jacob Elordi é a Criatura, vestido da cabeça aos pés de pele recortada e remendada. Seus olhos lacrimosos refletem a crueldade e as provações que Victor transforma em rotina, ao passo que sua evolução, bem como a criação de um senso de si e dos outros, é fragmentado pela culpa de ter nascido e pelo ódio de estar sozinho.

A Criatura se compadece pelo homem cego, vivido por David Bradley, a voz de Gepeto no Pinóquio de del Toro e o lorde Frey de Game of Thrones (Foto: Netflix)

Del Toro adapta Shelley com rigor e, de maneira esperada, pincelando os temas e cicatrizes que melhor conversam com seu Cinema, dedicado às criaturas vorazes e ferozes que são esquecidas em prol do que é belo e vistoso. O Monstro de Elordi se destaca pela figura física e por repelir o que se espera da brutalidade de um ser feito a partir da carnificina e da desordem.

E se Victor é todo razão e seu filho bastardo é guiado pela emoção, a Elizabeth de Mia Goth caminha pela dúbia fronteira, alcançando a perversidade do homem e ligando-a a boaventura do monstro. O primeiro encontro deles, emulando o toque que Deus deu em Adão, é feito com a inocência e a bondade que a Criatura foi negada.

Elordi passou horas e horas na cadeira de maquiagem – e nem era a primeira escolha para o papel, já que substituiu Andrew Garfield pouco antes da produção começar (Foto: Netflix)

Nos visuais, del Toro decanta o gótico e usa de figuras de sua infância no México para destacar também a origem e a herança de um Victor na pele de ator latino. O Anjo da Morte que guia seus sonhos, feito de efeitos práticos e com auxílio de artistas mexicanos, é tanto agouro quanto sacerdote da sina do doutor.

O único que acredita e dedica tempo e recursos a ele é um homem desesperado pela vida eterna que cozinha os órgãos com mercúrio. Christoph Waltz, acostumado ao tipo dramático, absorve as ambições de Isaac e devolve a energia em cenas carregadas de angústia, no único personagem original do filme.

Adepto aos efeitos práticos e à construção de cenários, Del Toro investiu no caráter manual da história, do navio congelado ao laboratório de Victor e suas diversas experiências (Foto: Netflix)

A fotografia de Dan Laustsen eterniza o sonho do diretor, que prova o poder das imagens e das intenções, mas falha na fagulha de excitação e estranhamento que Shelley tornou-o tão imprescindível em seu romance. Faltou o toque do estranho, do olhar queer que poderia transformar esse belo e trágico reconto numa versão de absoluto controle e oratória.

Ideias originais, como a Noiva como parceira de vida e não de paixão, surgem aqui e acolá, assim como as cores lavadas que constituem o corpo outrora esverdeado do monstro centenário na veia da inocência. Na sede de falar de tudo (o barco! o capitão! os diários! a infância!) Guillermo del Toro fica no caminho da glória, criando um monstro pomposo, viril e deveras inócuo. 

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