De Quatro: para Miranda July, a vida começa depois da metade

Na rota da perimenopausa, autora faz livro de viagem interna com muita acidez e sensualidade

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A protagonista que Miranda July escreve é uma reflexão da própria personalidade — juntas, as mulheres chegam a um impasse tremendo: a crise da meia-idade. Potencialmente devastadora e mortal, com conexões cerebrais inverossímeis e muita tensão descarregada aos ares, um livro chamado De Quatro aparece para eternizar os sacrifícios e reflexões.

Miranda July é artista, já dirigiu filmes, clipes musicais e trabalhou no meio criativo. Desta vez, usa os instrumentos da ficção para narrar a viagem que fez quando completou quarenta e cinco anos, de sua casa até o outro lado da América, em Nova York.

Pelo menos essa era a ideia, mas uma passagem por Monrovia, na Califórnia, e uma hospedagem num motel de beira de estrada mudou por completo o cronograma. Ela conheceu um rapaz mais jovem, contratou a esposa dele para redecorar o quarto alugado do chão ao teto e gastou o dinheiro da viagem com essa empreitada.

“Foi onde me tornei quem sou – ou, ao menos, um eu que duraria muito tempo”.

No Brasil, a editora Record publica De Quatro sob o selo Amarcord e com tradução da poeta Bruna Beber (Foto: Amarcord)

Através de uma escrita foragida das convenções dos romances de formação e amadurecimento, July impregna sua Literatura com a jocosidade e as intermináveis DRs que as mulheres têm consigo mesmas. O sexo é agente ativo das transformações da personagem, que entra em crise e leva o leitor por um espiral de culpa e liberdade sem limites.

Entre as novas experiências com o dançarino Davey e as memórias familiares do marido Harris (“Claro que ele é um gato, implacável, perspicaz, mas isso pouco importaria se não houvesse essa lealdade estranha, quase piedosa, entre nós”) e de filhe Sam, a protagonista navega com ajuda de remédios para dormir e muita força de vontade e concentração. Só para, quando acabam os dias da viagem, ela precisar voltar a monotonia da rotina de mulher casada e mãe exemplar.

“Qualquer coisa pode virar um ritual, basta que lhe demos o nome antes que chegue ao fim. Esse foi o Ritual da Permissão. Permito-vos que fodas meu marido. Arrematamos com todas as almofadas floridas, uma por uma”.

Caso raro de uma protagonista falha e disposta a errar antes de considerar fazer “o que é certo”, De Quatro é um manifesto público para com as mulheres e pessoas destinadas a se reinventarem para além do prazo de validade que a sociedade estipular para tais mudanças.

Seja no campo profissional, onde ela está empacada com a criação de um novo projeto, ou no pessoal, território onde o casamento é menos polvoroso que antes e a criação de Sam demanda que uma faceta seja levantada e alimentada, a mulher é alçada ao inexplorado mundo das cinzentas decisões.

“As grandes mudanças sempre acontecem assim, não ao longo de uma vida, mas em intervalos de gerações”.

Os temas de De Quatro conversam com a trama da vilã Odete Roitman em Vale Tudo, que não vê impeditivo etário ao viver suas aventuras e casos românticos (Foto: Globo)

Ela se volta a uma amiga, e até à antiga amante do homem por quem está obcecada, rendendo cenas de teor cômico e trágico impossíveis de passarem despercebidas. De Quatro é menos uma aventura na estrada com a mulher, e mais um aglomerado hiperbólico do que significa ser quem se é num mundo que rejeita os rótulos e odeia aqueles que desafiam as regras.

July é engraçada, escreve desilusões como ninguém e até se joga numa fossa amorosa que chega a dar dó. Tudo isso amparada pela certeza de que, ao final do corredor, as pessoas que ama estarão lá para servir de apoio e fortalecimento; nem que seja por pena, a incerteza do futuro é menor quando vivido ao lado deles.

“- Todo mundo acha que a posição do cachorrinho é muito vulnerável – disse Jordi -, mas é uma das mais estáveis. Como uma mesa. É difícil cair quando se está de quatro”.

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