Que atire a primeira pedra quem previu o sucesso histórico de Coringa, filme de 2019 que se tornou bilionário e venceu dois Oscars. Com orçamento tímido, direção de um especialista em comédia e a ideia de botar fogo na sociedade que excluiu e aprisionou Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), o drama soturno posicionou-se no topo do zeitgeist. E, claro, não demorou o anúncio de uma sequência.
Cinco anos depois, Coringa: Delírio a Dois, ou Folie à Deux, no original, é repleto de surpresas. Para começar, trata-se de um musical jukebox – quando os personagens cantam músicas já famosas e não originais – e se centra no tribunal que julgará Arthur pelos crimes cometidos no passado. Na garupa, escala Lady Gaga no papel de Lee, uma detenta da ala mais branda do Arkham que logo chama a atenção do prisioneiro.
Feito tanto como continuação quanto manifesto anti-Coringa, Todd Phillips retorna à direção com mais apatia do que qualquer outro ímpeto. Muso da parcela de internautas que glorifica a violência e desacata o bom senso, o Palhaço do Crime é remodelado ao que parece ter sido a ideia original do cineasta, que assina o roteiro com Scott Silver, mas sem a companhia da produção de Bradley Cooper, que não retorna ao projeto.
A primeira sequência da carreira de Joaquin Phoenix é insossa no melhor cálculo de seu realizador. Incapaz de referenciar sem tornar esdrúxulo o movimento de homenagem, Philips coloca Lee e Arthur na plateia, assistindo a uma cena de The Band Wagon (1953), um dos muitos objetos de admiração e repetição do filme.
Sutileza nunca foi o forte do homem que deu ao mundo três aventuras de Se Beber, Não Case e precisou trazer Robert De Niro em carne e osso para piscar referências à Martin Scorsese e seu Rei da Comédia. Desta vez, ele dobra a aposta no caos e desata a organizar os números musicais por ordem de cronologia e não de importância. A câmera de Lawrence Sher volta às ruas, celas e cortes de Gotham City sem o brilho maléfico de antes.
O mesmo vale para a Trilha Sonora Original de Hildur Guðnadóttir, descompassada e um tanto desapontadora no que se refere a um filme em que a Música é parte vital. Gaga impressiona pelos vocais, e acompanha Phoenix nessa jornada de metamorfose, mas a personagem, que se baseia na Harley Quinn dos quadrinhos, carece de fôlego ou dimensão. Ela mal aparece, e quando está em cena, é adereço ao que quer que o Coringa precise.
O elenco que repete os papéis originais sintoniza na chave do mesmo abatimento da produção, em constante reciclagem do que aconteceu no clímax anterior. Sorte de De Niro e Frances Conroy, que morreram em Coringa e não precisam aturar o cíclico roteiro da continuação. Nem Catherine Keener, Brendan Gleeson ou Harry Lawtey se saem melhor, já que suas participações como a advogada de defesa, o guarda de Arkham e o promotor Harvey Dent conseguem deixas dignas de menção.
O único ator que passa raspando pelos mais de cento e trinta minutos é Leigh Gill, que depõe contra Arthur na posição de única testemunha dos crimes no apartamento. Na cena, com Phoenix devidamente emperiquitado e abusando do sotaque de Kevin Costner em JFK, criminoso e vítima se olham nos olhos e trocam confidências íntimas.
Com canções de Judy Garland, Frank Sinatra e companhia, os números musicais tendem para a latência, desfigurados e desinteressados. Todd Philips cria a antítese da versão do personagem que popularizou à exaustão: o cara comum, machucado pela sociedade, passa de mártir heroico para coitado em problemas. Sem glamour, sem agrados ou prêmios de participação, esse Coringa é só mais uma carta no baralho.
Deixe um comentário